segunda-feira, 17 de março de 2014

Domingo à noite





Domingo à noite

As escadas não têm pó, os cantos foram muito bem limpos e no tampo da mesa não se escreve o teu nome, um palavrão, nada. Uma mesa de madeira, como devem ser as mesas de madeira limpas e arrumadas. A sala está imaculada, os livros estão fechados e têm dentro um marcador, um pano de linho cobre a banqueta forrada a brocado branco, o écran da televisão está escuro e brilhante, as jarras têm flores, o candeeiro de vidro mostra a parede branca, o céu escureceu, a lua cheia faz-lhe companhia e, até, se pode ouvir música. No ar, o cheiro nosso, de casa, laranja e âmbar, quente, invisível. No silêncio, percebo os dedos no teclado e uma torneira a pingar. Paira a voz da vizinha, a porta de um carro a fechar-se, a linha de rio ao fim da rua, se me levantasse para o ver. Há quadros novos na parede, uma taça  de vidro na mesinha da entrada onde se podem poisar as chaves, quando chegamos a casa. Respiro fundo, encolho os ombros e penso em ti. Se aqui estivesses, eu não teria reparado na limpeza do chão e as cadeiras estariam desalinhadas. Estaríamos a ouvir uma canção de que não gosto, teria aberto o Expresso, talvez pedisses pizza para o jantar e eu, por momentos, pensaria no desconcerto do mundo discutiríamos a opinião conservadora e homofóbica dos teus colegas betos, ouviríamos atentos os argumentos do teu irmão, entraríamos, calmos, na semana de aulas, trabalhos de casa, testes intermédios e despertadores. Como fazemos sempre ao domingo, antes do jantar. Mas tu não estás, o teu irmão também não e só consigo pensar que não te conheço, não sei o que te falta, não entendo o teu sofrimento - o meu foi tão diferente! Vejo a raiva que cresce, a mochila atirada para o chão, os livros sem capa, o desespero do teu olhar, a agressividade nos gestos, vejo a voz a crescer, o corpo descontrolado, os pés descalços, sempre descalços, a angústia na recusa e o coração que não controlas a troçar da tua fragilidade. Tu não estás aqui, a meu lado, mas nunca daqui saíste, nunca sais, a tua presença não me incomoda, vivo mal sem o teu sentido de humor e  não sei com te hei de dizer isto, não sei! Ter quinze anos é tremendo, mas olha, também é tremendo ser-se. Depois dos quinze vêm os dezasseis, os dezassete e por aí fora, pouca coisa muda e nada, ou quase nada, melhora com o passar do tempo, garanto-te. Aprendemos a viver com o que somos, o que temos, de vez em quando, batemos o pé, jogamos um copo ao chão, derramamos uma cerveja na cabeça de alguém e aprendemos a ser pontuais. Arranjamos um deus, deitamos cá para fora o amor com que nascemos, entretemo-nos a namorar e, um dia, acharemos graça à primavera, mas os quinze anos só ficarão longe no relógio e, sim, as borbulhas desaparecem. Prometo-te.
É tremendo ser-se, acredita.

 E tu serás capaz de me prometer que vais pensar em tudo o que eu te disse?

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