terça-feira, 22 de julho de 2014

Homens temporiamente sós - um epílogo possível.





Homens temporariamente sós – um epílogo possível.

Na segunda garfada de frango de fricassé, sentida e mastigada com os sentidos todos, percebeu que já era tempo de deixar o Rui Reininho seguir o seu caminho. Ficou suspenso no gosto do limão envolvido no ovo, na carne tenra do frango e recuou a um tempo que já não existia. Sim, estava na hora, em breve faria cinquenta anos, arrumara o luto, tinha um bom emprego, e na frente e segundo melhor prato de frango de fricassé de toda a sua vida, sim, porque o melhor, só a sua querida mãe o sabia fazer. O pai juntara-se a ela e a sua independência confundia-se com a liberdade de um homem temporariamente só - momentos de uma solidão que com dificuldade conseguia entender. Mais do mesmo, pensava, quando chegava a casa e tinha de fritar os bifes, ouvir as queixas do companheiro de casa e o silêncio de quem não tem de  contar o seu dia. Porque não tem a quem o contar. Acabara o luto, ainda tinha de resolver as questões prosaicas de um casarão para arrumar. E porque não?

 Vira-a, pela primeira vez no elevador, não prestou atenção. Uma colega. Farda azul-escura, cara de quem do mundo apenas conhece o caminho para a Damaia, a perna alta, o cabelo de um louro indefinido. Continuaram a encontrar-se no elevador, à mesma hora, cheirava a um perfume de supermercado, o casaco já tinha um pouco de brilho e baixava os olhos quando ele muito hirto no seu olho azul de homem temporariamente entrava no elevador e dizia um polido e bem-educado, Bom Dia. Ele sentiu que não lhe era indiferente, sorria no seu egoísmo de homem só e mirava-a, pelo canto do olho, no espelho do elevador. Recordava-se de alguns filmes que vira, de cenas de elevador sorria e saía no piso a seguir ao dela. Secretária da direção, operadora de sistemas delegada com muitas horas a entender telefone. Sorriu, já tinham alguma coisa em comum. Andaram para cima e para baixo no mesmo elevador, durante um mês, talvez dois, ela temia a sua timidez de menina de quem só conhece o caminho para a Damaia, saía antes que ele lhe dissesse uma frase mais delicada, um elogio… Por essa altura, já tinha reparado na copa D, no tornozelo fino, no colarinho da camisa sempre direito, na pontualidade e no rubor, quando os seus olhos saíam do espelho. Percebera o nome na placa na banda do casaco, conhecia o piso em que trabalhava…. E a copa D não lhe deixava muito espaço para metafísica. Amanhã convido-a para jantar. Não, talvez seja melhor almoçar.

Na semana seguinte, já almoçavam juntos quase todos os dias ele falava e ela ouvia-o. Ouvia tudo o que ele dizia, ele gostava de ser ouvido. Gostava de se ouvir. Ela gostava de o ouvir, não, porque o compreendesse, mas aprendera a ouvir. Muitas vezes, não o escutava, não o entendia. Não conhecia os filmes de que ele falava, calava-se quando ele trauteava uma canção e lhe perguntava. Conheces este tema? Ele insistia, ela calava-se, sorria, jogava o peito um bocadinho para a frente, declinava a sobremesa, não posso engordar. Pois não, querida, não pode. No dia em que bebiam um copinho de vinho ele arriscava Ah! Pois é Bébé! Ela ficava confusa, acelerava o almoço, dizia-lhe que tinha trabalho atrasado e saía a correr. Um dia arriscou convidá-la para jantar, ela atreveu-se e propôs -lhe as suas duas assoalhadas na Damaia, sairia mais barato, como ele gostava – pouco despesa e muita calma, já lá iam umas semanas de almoço, ele já sabia que ela era  órfã, ele também era, ela era mais nova e aquela sua expressão de  quem só sabia o caminho para a Damaia, dar-lhe-ia paz, as noites de póquer, os jantares de homens, não lhe corrigiria o português, não falariam de nada muito sério, garantir-lhe-ia o gin tónico, os jogos do mundial, respeitaria as suas vontades e em breve a copa D seria celebrada com uma pela macia de criança, sem um pelo, uma mancha, um cheiro. Se calhar, apaixonei-me, eu também não lhe sou indiferente, falava pouco, é verdade, mas o resto, qual resto? Pensaria nisso mais tarde. Comprou uma boa garrafa de vinho, um ramo de rosas e quando bateu à porta das suas duas assoalhadas na Damaia o cheiro de frango de fricassé rescendia no prédio inteiro. Ela vestia uma saia preta, uma camisa branca, pusera o colar de pérolas que a madrinha lhe oferecera e os sapatos de verniz que nunca calçava no emprego, acentuara o perfume – uma réplica bem intencionada  de Dior – iluminara o sorriso com o baton e colocara velas da Loja do Gato Preto, na sala, em cima de todos armários. Pediu-lhe que se pusesse à vontade, ofereceu-lhe um gin tónico, tenho de a ensinar a preparar um gin tónico, enquanto olhava para o espelho da sala e despia o casaco sem desalinhar a camisa. Vou mostrar-te a casa, dissera-lhe ela, mostrou a casa de banho minúscula e interior, a cozinha com os apetrechos todos e uma Bimby coberta com um paninho de crochet, o fogão com forno e o frigorífico combinado, a vista não é muito bonita, mas os vizinhos são muito simpáticos, avançaram para o quarto, colcha de cetim, lençóis pretos, velas de várias cores e uma prateleira com o que lhe pareceu ser os retratos da família toda. Todos mortos e alumiados com velinhas. Não viu um livro, um CD, um par de sapatos desalinhado, uma gota de humidade, era muito arrumada, talvez tivesse bom gosto, faltava-lhe um aparelho de som, uma televisão LCD, agrada-me que se tivesse lembrado dos lençóis pretos e da penumbra no quarto. Gostas, perguntou-lhe a sua timidez? Acho que não me esqueci de nada do que fui percebendo que tu gostavas, esqueci-me de alguma coisa? Não, Bébé, está tudo impecável. Vamos jantar, pediu ela com uma voz suave a piar e com  o timbre de quem só conhece o caminho para a Damaia, o molho do fricassé tem de ser comido, depois de ser cozinhado. Vamos jantar! Vamos lá, então.

Enquanto jantavam ouviam Roberto Carlos, o vizinho de cima é doido por Robert Carlos, mas não te aborrece, pois não? Ele não se aborrecia e até trauteava com desenvoltura Tudo pára quando a gente faz amor, mas e agora? Ter-se-ia perdido a magia? À terceira garfada de fricassé com que se lambuzou pensou que poderiam sempre mudar de casa e ter um filho, ela era muito nova, deveria ter bons genes, tinha anca larga, uns bons seios, tinha aquela estar de quem tem pouco mundo: uns programas do National Geografic e  ela ficar-lhe-ia muito agradecida….

Até ando a experimentar uns pratos novos de bacalhau, confessara-lhe, muito orgulhosa, mas não são na Bimby.  Gostaria de casar de vestido branco, branco pérola, vá, com decote, pode ser curto, tu dizes que te casarias com cinquenta anos?

E porque não? Mas serei capaz de ser feliz? De a fazer feliz? Não, isso não tenho dúvida, já a faço muito feliz. Sim, gostaria de ter mais um filho. E, porque não?

(Bastaria a copa D e o frango de fricassé? Pois, talvez, seja esse o segredo. Iria pensar no assunto, ela tagarelava sobre um bacalhau que se coze na véspera e de nunca ter ido à praia, tenho a pele muito branca, dizia-lhe, levas-me a uma esplanada um dia destes?)

 


3 comentários:

  1. li, reli. Adorei. Mas não sei se algum dia voltarei a amar um fricassé.

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  2. Também li duas vezes.
    Gosto do ritmo e muito da imagem da simplicidade da rapariga que só sabe o caminho para a Damaia.
    Tens que pensar seriamente em escrever um romance!!!

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  3. Eu também não sou muito apreciadora, mas não é preciso - falo que me farto.

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