Apetecia-me
um cigarro.
Quando se
sentou à mesa do café sentiu-se mais calma. O bater lento e repetido da chuva,
na janela, devolvera-lha o bater mais certo do coração. Secava as mãos na saia,
pediu um café, meio copo de água, lembrou-se que um cigarro saber-lhe-ia bem.
Lembrou-se da sombra do fumo do cigarro nas suas mãos. Olhou através da chuva.
Olhou através das pessoas. Entrara para
beber um café e dar uma folga aquela aflição. O café estava vazio. Os bolos no
balcão enchiam-se de moscas. “Aqui está o seu café, o copo de água, minha
senhora. Sessenta cêntimos, se fizer a fineza.” Faria a fineza, moedas certas.
Não precisaria de troco. "Muito obrigada e volte sempre”, ela ainda não bebera o
café e o empregado já estava a mandá-la embora. Iria. Quando lhe apetecesse.
Poderia até nem beber o café, com um pouco de água, como era seu hábito.
Poderia. Poderia até nem ter entrado naquele café. Teria escolhido outro.
Chovia. Estava quase sem fôlego, precisava de se sentar. Uns minutos, apenas
uns minutos. Há horas que deambulava pela cidade, antes de começar a chover, decidira
andar. Descer e subir ruas. Olhar a cara das pessoas. Ver-se no rosto dos
outros. Olhar-lhes as roupas. Os olhos. Atrasar-se para a solidão. Bebeu o
café, soube-lhe mal. Estava frio. Não pediria outro. Ficou sentada mais um
bocado, olhou para a rua. O passeio molhado. Gente apressada. Chapéus de
plástico cobriam a cabeça das pessoas. Jornais e pastas a proteger algumas
carecas. “Vou ficar toda encharcada, não tenho guarda-chuva, perdi o chapéu. A
chuva na cara não me fará mal nenhum,” falava sozinha, baixinho. Só ela ouvia.
Pouca coisa lhe poderia fazer mal. Faria de conta que estava à espera que
parasse de chover para sair do café. Entraram mais pessoas. Um casal de velhos,
duas adolescentes, uma senhora mais composta. Se soubessem como o café é mau. "Ainda
bem que pediram chá de limão, coca-colas uma água sem gás”. Olhou o relógio. Seis
horas em ponto. Quando fossem seis horas e cinco minutos, levantar-se-ia,
comporia o lenço colorido dentro da gola, agarraria a mala com as duas mãos e
sairia. Estava mais serena. Mais infeliz. Mais triste. Mais só. Ela soube no momento
em que ele lhe ligou para se encontrarem, para lhe explicar, mais uma vez, as
suas razões, que ele não apareceria. “Quero explicar-te o que sinto por ti.
Quero dizer-te o quanto foste e és importante na minha vida. Beberemos um café,
um chá. O que tu quiseres”. Foi nesse instante: “O que tu quiseres”, dissera
ele. O que ela quisesse. "O que tu quiseres”, dissera-lhe ao ouvido. Um sopro e ela
percebeu que não esperaria por ele. Um minuto e decidiu, apesar da mágoa, que
não queria. “O que tu quiseres, um café, um chá o que tu quiseres. O que tu
quiseres, um café, um chá.” Já não queria nada. Já não o queria. Não queria. Atrasara-se
três minutos. Eram seis horas e oito minutos, quando saiu. Parara de chover.
Atravessaria a rua para apanhar o autocarro. O peão verde deixou-a correr.
Agora, sim, beberia o café, o chá. O que quisesse. Entretanto anoitecera.
Encolheu-se no frio. “Arrumei em três horas a infelicidade de quase uma vida”.
Tirou o bilhete do bolso, entrou no autocarro. Estava cheio, cheirava a
pessoas, a álcool e a humidade. “O costume. Tenho de engraxar as botas quando
estiverem bem secas. Quer sentar-se aqui? Eu saio na próxima.”
Este texto é outra crónica, intimista e ao mesmo tempo pública. Estes textos fazem-nos ver a nós mesmos. Tu tiras as palavras do sangue, e retratas o ser humano, ó cardíaca fotógrafa verbal, de olhos raros. Caramba, eu vejo-me ali também no café, na passadeira da rua. E nunca escrevi nada parecido. Obrigada pela dignidade que nos dás. Agora também fumava um cigarro.
ResponderEliminarMuito obrigada pelas tuas, sempre, tão generosas palavras. És uma fiel leitora que muito me orgulha. Este texto foi escrito há uns tempos, hoje resolvi pregar-lhe e escrevê-lo "de lavado". Ficou assim.
ResponderEliminarTambém fumava um cigarro.
Escrita intimista, prosa enxuta, enfim um deleite. Li como quem vê, como quem ouve o sussurrar daquela figura feminina. Também me caíram algumas gotas de chuva na alma. Parabéns.
ResponderEliminarUma sensação de aconchego para a alma que me transporta para um pequeno espaço de café a cheirar a café e a cigarro - transporta-me para tempos remotos da escola de Belas Artes no café São Lázaro no Porto. Parabéns e obrigado por estas memórias Linda!
ResponderEliminar