O eclipse.
Para trás, por um par de horas, ficará a casa
com as coisas todas lá dentro. Seguirá em frente, para o rio carregado e imenso,
luminoso de prata escura. Ainda brilha. Atravessa o bairro, os cães asseados e burgueses,
rapazes de bicicleta, dois casais de mão dada, uma mulher a falar muito alto empurra
um homem, obriga-o a espreitar para dentro de uma casa em obras, ao longo das
ruas as folhas dançam, têm o passo miúdo e lento da aragem e a cor do outono.
Arrefeceu, está bom, quando acabar de atravessar o bairro terá calor e a razão mais certa. A três de novembro, depois do eclipse, queima-se
o que sobra e recomeça-se. Agora, precisa do rio, talvez consiga uma reconciliação.
Afastou-se há alguns anos, prometeu que não lhe contaria segredos e
jogaria a esperança, apenas, até à Trafaria, o resto dos sonhos ficariam para
si. Continuou a descer. Entrou na avenida, os passeios largos tinham as raízes
de algumas árvores à mostra, pedras soltas e desalinhadas pediam cuidado e
atenção, aqui e ali, o alcatrão fendido, riscas brancas e semáforos também
corriam para o rio. Olhou para as capelas mortuárias fechadas. Não se morre ao
domingo. Não se pode estar morto ao domingo. Uma porção de passeio e um bocado
de terra compunham as traseiras dos Jerónimos. Ciprestes viris alongavam-se, sumaúmas
de copas redondas, agapantos por florir, musgo de cores diferentes, o cheiro a
castanhas assadas e o rio em frente. Teria de espreitar a feira do jardim, um
livro, uma jarra um relógio barroco, uma grafonola, quinquilharia, pechisbeques,
selos, calendários, brinquedos em madeira. Abrandou o passo, tinha calor, havia
uma réstia de sol a brilhar nas pratas e nos vidros, um neozelandês gritava um
canção que não conhecia, uma mulher romena estendia a mão, um cão tocava fole e o Tejo, mais perto, exigia que descesse pelo túnel. Desceu. Um caminho escuro, gente, cheiro
a fritos, aguarelas. Ao domingo, nesta zona da cidade, cruzam-se pessoas de
todas idades, origens e raças. Aquela hora, ali, há um centro do mundo. Aproximou-se
do rio, desceu um degrau e sentou-se. “Aqui estás tu, e agora? Queres
conversar?” E ficaram entretidos um com o outro. Ondinhas vinham até à margem,
desfaziam-se, voltavam outras, desfaziam-se uma vez e outra. A água escura e
pesada a ir e a vir. Sempre outra. Com o rio que ia e vinha, arrefeceu,
serenou. Reconciliava-se com o rio. Não precisava de mais nada. Levantou-se,
virou-lhe as costas e deixou-o com todas
as coisas lá dentro.
belíssimo texto.
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