domingo, 3 de novembro de 2013

O eclipse.

http://youtu.be/_H9P9hZwjbA   Madredeus,Tejo


O eclipse.


Para trás, por um par de horas, ficará a casa com as coisas todas lá dentro. Seguirá em frente, para o rio carregado e imenso, luminoso de prata escura. Ainda brilha. Atravessa o bairro, os cães asseados e burgueses, rapazes de bicicleta, dois casais de mão dada, uma mulher a falar muito alto empurra um homem, obriga-o a espreitar para dentro de uma casa em obras, ao longo das ruas as folhas dançam, têm o passo miúdo e lento da aragem e a cor do outono. Arrefeceu, está bom, quando acabar de atravessar o bairro terá calor e  a razão mais certa. A três de novembro, depois do eclipse, queima-se o que sobra e recomeça-se. Agora, precisa do rio, talvez consiga uma reconciliação. Afastou-se há alguns anos, prometeu que não lhe contaria segredos e jogaria a esperança, apenas, até à Trafaria, o resto dos sonhos ficariam para si. Continuou a descer. Entrou na avenida, os passeios largos tinham as raízes de algumas árvores à mostra, pedras soltas e desalinhadas pediam cuidado e atenção, aqui e ali, o alcatrão fendido, riscas brancas e semáforos também corriam para o rio. Olhou para as capelas mortuárias fechadas. Não se morre ao domingo. Não se pode estar morto ao domingo. Uma porção de passeio e um bocado de terra compunham as traseiras dos Jerónimos. Ciprestes viris alongavam-se, sumaúmas de copas redondas, agapantos por florir, musgo de cores diferentes, o cheiro a castanhas assadas e o rio em frente. Teria de espreitar a feira do jardim, um livro, uma jarra um relógio barroco, uma grafonola, quinquilharia, pechisbeques, selos, calendários, brinquedos em madeira. Abrandou o passo, tinha calor, havia uma réstia de sol a brilhar nas pratas e nos vidros, um neozelandês gritava um canção  que não conhecia, uma mulher romena estendia a mão, um cão tocava fole e o Tejo, mais perto, exigia que descesse pelo túnel. Desceu. Um caminho escuro, gente, cheiro a fritos, aguarelas. Ao domingo, nesta zona da cidade, cruzam-se pessoas de todas idades, origens e raças. Aquela hora, ali, há um centro do mundo. Aproximou-se do rio, desceu um degrau e sentou-se. “Aqui estás tu, e agora? Queres conversar?” E ficaram entretidos um com o outro. Ondinhas vinham até à margem, desfaziam-se, voltavam outras, desfaziam-se uma vez e outra. A água escura e pesada a ir e a vir. Sempre outra. Com o rio que ia e vinha, arrefeceu, serenou. Reconciliava-se com o rio. Não precisava de mais nada. Levantou-se, virou-lhe as costas e deixou-o  com todas as coisas lá dentro.

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