terça-feira, 15 de julho de 2014

Phil Collins - Another Day In Paradise






Another day in Paradise.

Sentou-se no sítio mais estratégico que encontrou, plataforma em mármore e pedra, colada à vitrina onde seriam afixadas as pautas. No átrio sofisticado e asséptico não havia cadeiras e os degraus da escada pareceram-lhe muito duros. A espera seria longa. Não amanhecera feliz já ninguém acorda a transbordar de felicidade, talvez, as crianças os amantes satisfeitos, e, no entanto, a realidade crua da luz do dia mostrará os assentos dos carros, a escaldar e um dia depois de ontem. Quanta ambivalência nos frágeis corpos humanos!  Ria-se quando dizia que se sentia frágil, que a dor abrandava quando ele punha o braço à volta da sua cintura. A cintura que cabia de um golpe só entre o punho e o cotovelo. À sua frente passavam as sabrinas, os envelopes castanhos, os vestidos de verão decotados, as saias curtas, as miúdas, os miúdos. Ela esperava. Ainda, guardava o amargo que vinha da alma, - fica sempre um sabor acre -, um arranhão, uma nódoa negra. Naquele momento, debruçava-se para a placa de mármore e madeira, qual teclado do seu computador, da sua secretária. Não houvera envolvimento, afinidades. Nada de muito pessoal. Um  emaranhado de vias rápidas a separá-los, um milhar de livros de que ele nunca ouvira falar, o apego aos filhos que ele desconhecia, a avidez de predador que a assustava. Ainda assim, ficaram as mãos, as canções de Abrunhosa, o gemido de dois corpos que se encontram. O tempo avançava de havaianas, rastras e pranchas de surf. Depois do almoço disseram-lhe, depois das duas horas da tarde, pensou que se estivesse em São Tomé ficaria até à hora do lanche o que a obrigaria a voltar na manhã seguinte. De que matéria seria feita o tempo? Os mais crescidos com o curso de medicina no fim da linha e dobrado nos envelopes castanhos, alguns engenheiros com pontes desenhadas nas caras de acne e barba rala, ocupavam a sala minúscula da secretaria. Uns passos adiante, porque não amanhecera feliz, as lágrimas eram expectativa e desilusão. Preferia a desilusão, a negação de uma ilusão que não se cumpriu. Um sonho, um balão cheio de ar. Compôs a canção  A kiss with a dream to build on, andara distraída, desfizera a culpa, a vaidade ganhou um corpo, e durante, algum tempo, andou  naquele limbo de que nada poderia ser, a seguir e, no entanto, tudo poderia acontecer. Poderia? Aprendera que a ilusão não resiste à distância que separa as Olaias de Belém. Moramos muito longe, línguas diferentes, teríamos de aprender um linguajar intermédio. O átrio, cada vez, mais ruidoso, tranças e abraços a fazer-lhe companhia. De vez em quando, aparecia um ar mais sério, mais composto, Olá Pedro, o menino está contente com os resultados? O menino estava, do seu menino continuava sem saber nada. De que falariam naquele linguajar? De futebol? De velhos? Da lua que lhe era indiferente? De arte? Da vida? Da sua? Da dele? A única que valia apenas ser vivida? Era o menino de sua mãe, conheceria ele o poema de Pessoa? Não deveria conhecer, seria isso muito importante? Entre as Olaias e Belém? Com que olhos veriam o Tejo? O arranhão na alma fica sempre. As nódoas negras também. Depois saram. E daí? A seu lado, duas miúdas discutiam a negativa a matemática e as idas ao Urban suspensas até Outubro. Estavam vestidas com calças da mesma cor e cheiravam a champô de morango. Levantou os olhos reconheceu um colega, encolheu-se na caneta azul  e no seu caderninho cor de rosa. Deixou a caneta deslizar até à espuma branca, tinha os pés na água morna, ouvia as gargalhadas e via os castelos de areia crescerem, cobertos de conchas, algas, pauzinhos. Os meninos gostavam. O pai ajudava-os e ao longe, a fazer de conta que aquele momento não lhe pertencia, amava-os com aquele amor abençoado, genuíno e raro. As ondas iam e vinham, ela fingia a atenção na leitura, esperava que o tempo parasse. Terá sido esse o seu desejo naquele momento? Não lhe interessava. Trouxera para aquela pedra mármore fria e branca um presente que já tinha passado. Não seria sempre assim? Sentia o cheiro da maresia e do Ambre Solaire. O telefone tocou, era uma amiga preocupada, uma amiga que lhe pediu que não chorasse, pensa nas desgraças dos que não têm uma mãe, assim, como tu, pensa nisso. Prometeu não chorar sem antes tirar o rimmel e o lápis preto. Não ficarei com os olhos todos borrados. Ganhou coragem e voltou aos clichés do que agora se chamavam relações amorosas, namorados, amigos coloridos? Uma ética A. S.E. A. C. e outra ética D.S.E.A. C. , isto é, Antes  de o Sexo e a Cidade e Depois de o Sexo e  a Cidade.. Não conhecia New York. Carrie Bradshaw era uma imagem da televisão. Démodé e sem graça, estéril. Que insistimos em copiar. Recuou até Casablanca e An Affaire to Remenber. O silêncio ocupava o átrio como se todos se preparassem para subir o Empire State Building. Chegaram uns senhores mais sérios escolhiam as vitrinas, arrumavam papéis, ainda vai demorar, ficarei o tempo que for preciso. Sem expectativa, com um pouco de dor, mas já sem culpa. Continuou sentada, o caderninho cor rosa nos joelhos e, de repente, lembrou-se, e se eu fosse daqueles putos muito mal criados,  que cospem no chão, e cuspisse de vez para os arranhões de alma, para as dores todas e lhe fizesse com a ponta daquela parker azul escura , um risco que desse uma volta completa ao carro? Se eu fosse um puto muito malcriado e lhe furasse os pneus do carro? E, se eu dissesse muitos palavrões e mandasse  o senhor sério  para o ….

Guardou  o caderno cor de rosa, fechou  a parker, olhou  para as pautas, percebeu  que o seu menino iria passar as férias em Alemão e  manuais de Ciências da Natureza. Como não é  um puto malcriado não lhe riscará o carro- até porque já não o consegue  diferenciar de todos os outros que por aí circulam –que queres ?! não tenho memória para carros – quanto ao cuspir, estou quase a ir tão longe quanto o menino que gosta de estudar e não se deita sem me abraçar.

De um momento para o outro, tornamo-nos pessoas diferentes. De um momento, para o outro.

 

2 comentários:

  1. Só posso dizer que li quatro vezes e que me encanta a forma, as imagens, as comparações como expões a tua 'observação' e interiorização.
    Um abraço

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  2. Como sempre adorei o ritmo da tua escrita. Tive que reler de novo, para não me deixar levar pela admirável velocidade da tua escrita. É fantástico!

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