Another day
in Paradise.
Sentou-se no
sítio mais estratégico que encontrou, plataforma em mármore e pedra, colada à
vitrina onde seriam afixadas as pautas. No átrio sofisticado e asséptico não
havia cadeiras e os degraus da escada pareceram-lhe muito duros. A espera seria
longa. Não amanhecera feliz já ninguém
acorda a transbordar de felicidade, talvez, as crianças os amantes satisfeitos,
e, no entanto, a realidade crua da luz do dia mostrará os assentos dos carros,
a escaldar e um dia depois de ontem. Quanta ambivalência nos frágeis corpos
humanos! Ria-se quando dizia que se sentia frágil, que a dor abrandava quando
ele punha o braço à volta da sua cintura. A cintura que cabia de um golpe só
entre o punho e o cotovelo. À sua frente passavam as sabrinas, os envelopes castanhos, os vestidos de
verão decotados, as saias curtas, as miúdas, os miúdos. Ela esperava. Ainda,
guardava o amargo que vinha da alma, - fica sempre um sabor acre -, um
arranhão, uma nódoa negra. Naquele momento, debruçava-se para a placa de mármore
e madeira, qual teclado do seu computador, da sua secretária. Não houvera
envolvimento, afinidades. Nada de muito pessoal. Um emaranhado de vias rápidas a separá-los, um
milhar de livros de que ele nunca ouvira falar, o apego aos filhos que ele
desconhecia, a avidez de predador que a assustava. Ainda assim, ficaram as
mãos, as canções de Abrunhosa, o gemido de dois corpos que se encontram. O
tempo avançava de havaianas, rastras e pranchas de surf. Depois do almoço disseram-lhe, depois das duas horas da tarde, pensou
que se estivesse em São Tomé ficaria até à hora do lanche o que a obrigaria a voltar
na manhã seguinte. De que matéria seria feita
o tempo? Os mais crescidos com o curso de medicina no fim da linha e
dobrado nos envelopes castanhos, alguns engenheiros com pontes desenhadas nas
caras de acne e barba rala, ocupavam a sala minúscula da secretaria. Uns passos adiante,
porque não amanhecera feliz, as lágrimas eram expectativa e desilusão. Preferia
a desilusão, a negação de uma ilusão que não se cumpriu. Um sonho, um balão
cheio de ar. Compôs a canção A kiss with a dream to build on, andara
distraída, desfizera a culpa, a vaidade ganhou um corpo, e durante, algum
tempo, andou naquele limbo de que nada
poderia ser, a seguir e, no entanto, tudo poderia acontecer. Poderia? Aprendera que a ilusão não
resiste à distância que separa as Olaias de Belém. Moramos muito longe, línguas diferentes, teríamos de aprender um
linguajar intermédio. O átrio, cada
vez, mais ruidoso, tranças e abraços a fazer-lhe companhia. De vez em quando,
aparecia um ar mais sério, mais composto, Olá
Pedro, o menino está contente com os
resultados? O menino estava, do seu menino continuava sem saber nada. De que falariam naquele linguajar? De
futebol? De velhos? Da lua que lhe era indiferente? De arte? Da vida? Da sua?
Da dele? A única que valia apenas ser vivida? Era o menino de sua mãe,
conheceria ele o poema de Pessoa? Não deveria conhecer, seria isso muito
importante? Entre as Olaias e Belém? Com que olhos veriam o Tejo? O arranhão na
alma fica sempre. As nódoas negras também. Depois saram. E daí? A seu lado, duas
miúdas discutiam a negativa a matemática e as idas ao Urban suspensas até
Outubro. Estavam vestidas com calças da mesma cor e cheiravam a champô de
morango. Levantou os olhos reconheceu um colega, encolheu-se na caneta azul e no seu caderninho cor de rosa. Deixou a
caneta deslizar até à espuma branca, tinha os pés na água morna, ouvia as
gargalhadas e via os castelos de areia crescerem, cobertos de conchas, algas,
pauzinhos. Os meninos gostavam. O pai ajudava-os e ao longe, a fazer de conta
que aquele momento não lhe pertencia, amava-os com aquele amor abençoado,
genuíno e raro. As ondas iam e vinham, ela fingia a atenção na leitura,
esperava que o tempo parasse. Terá sido
esse o seu desejo naquele momento? Não lhe interessava. Trouxera para
aquela pedra mármore fria e branca um presente que já tinha passado. Não seria sempre assim? Sentia o cheiro da
maresia e do Ambre Solaire. O telefone tocou, era uma amiga preocupada, uma
amiga que lhe pediu que não chorasse, pensa
nas desgraças dos que não têm uma mãe, assim, como tu, pensa nisso.
Prometeu não chorar sem antes tirar o rimmel e o lápis preto. Não ficarei com os olhos todos borrados. Ganhou
coragem e voltou aos clichés do que agora se chamavam relações amorosas, namorados,
amigos coloridos? Uma ética A. S.E. A. C.
e outra ética D.S.E.A. C. , isto é, Antes de o Sexo e a Cidade e Depois de o Sexo e a Cidade.. Não conhecia New York. Carrie
Bradshaw era uma imagem da televisão. Démodé
e sem graça, estéril. Que insistimos em copiar. Recuou até Casablanca e An
Affaire to Remenber. O silêncio ocupava o átrio como se todos se preparassem
para subir o Empire State Building. Chegaram uns senhores mais sérios escolhiam
as vitrinas, arrumavam papéis, ainda vai demorar, ficarei o
tempo que for preciso. Sem expectativa, com um pouco de dor, mas já sem
culpa. Continuou sentada, o caderninho cor rosa nos joelhos e, de repente,
lembrou-se, e se eu fosse daqueles putos
muito mal criados, que cospem no chão, e
cuspisse de vez para os arranhões de alma, para as dores todas e lhe fizesse
com a ponta daquela parker azul escura , um risco que desse uma volta completa
ao carro? Se eu fosse um puto muito malcriado e lhe furasse os pneus do carro?
E, se eu dissesse muitos palavrões e mandasse o senhor sério para o ….
Guardou o caderno cor de rosa, fechou a
parker, olhou para as pautas, percebeu que o seu menino iria passar as férias
em Alemão e manuais de Ciências da Natureza. Como não é um puto malcriado não lhe riscará o carro- até porque já não o consegue diferenciar de todos os outros que
por aí circulam –que queres ?! não tenho memória para carros – quanto ao cuspir,
estou quase a ir tão longe quanto o menino que gosta de estudar e não se deita
sem me abraçar.
De um
momento para o outro, tornamo-nos pessoas diferentes. De um momento, para o
outro.
Só posso dizer que li quatro vezes e que me encanta a forma, as imagens, as comparações como expões a tua 'observação' e interiorização.
ResponderEliminarUm abraço
Como sempre adorei o ritmo da tua escrita. Tive que reler de novo, para não me deixar levar pela admirável velocidade da tua escrita. É fantástico!
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