quarta-feira, 25 de junho de 2014

"Não sei quantas almas tenho" Fernando Pessoa


Não sei quantas almas tenho

[…]

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

[…]

Fernando Pessoa.   

 

“Diverso, móbil e só,/Não sei sentir-me onde estou.”

Sinto o teu cheiro no meu peito, na minha roupa. Percebo as sombras que dançam à nossa volta. Escolhes a cadeira de flores, pedes-me água. É muito nítida, bem definida, a mancha amarela que marcou os meus dedos quando me apertaste a mão. Olhavas através do vidro e vias os jacarandás a perder as flores, neste verão triste. Anoitece, tu insistes na luz do sol. Queres calor. A cor de um corpo e ondas com areia da praia. Um olhar que traga espuma, um eco, um regresso, uma certeza. Temos o olhar perdido, vago, olhamos para um ponto e depois para outro. Sabemos de cor o tracejado que o tempo deixou na parede, sabemos a história de cada uma das manchas. O olhar, errante, procura uma mancha que não conhecêssemos, uma cor que o fixasse. Ver nascer o sol, apreciar o cair da noite, o acre que fica no ar depois dos corpos agarrados e suados rolarem no chão. O silêncio acompanha a escuridão da noite. Sem lua. Sem palavras. Uma estrela no céu mais baixo, nuvens carregadas, desenhadas a carvão. Fixamos aquele brilho, o mesmo brilho através dos vidros das janelas a revelar os jacarandás mais tristes. Nada muda. Tudo mudou. Aquela estrela nunca saiu do céu, mas nós nunca a vimos. Nunca nos pertenceu? Não, nunca nada nos pertence, por inteiro. Somos como a estrela solitária. Num céu muito escuro, ou carregado de estrelas. Por que insistes em olhar para estrela? Não está lá ninguém. Ninguém. Nem o que somos. Ou pensamos ser.

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