Não sei quantas almas tenho
[…]
Atento ao que sou e
vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
[…]
Fernando Pessoa.
“Diverso, móbil e só,/Não sei sentir-me onde
estou.”
Sinto o teu cheiro no meu
peito, na minha roupa. Percebo as sombras que dançam à nossa volta. Escolhes a
cadeira de flores, pedes-me água. É muito nítida, bem definida, a mancha amarela
que marcou os meus dedos quando me apertaste a mão. Olhavas através do vidro e
vias os jacarandás a perder as flores, neste verão triste. Anoitece, tu insistes
na luz do sol. Queres calor. A cor de um corpo e ondas com areia da praia. Um
olhar que traga espuma, um eco, um regresso, uma certeza. Temos o olhar
perdido, vago, olhamos para um ponto e depois para outro. Sabemos de cor o
tracejado que o tempo deixou na parede, sabemos a história de cada uma das manchas.
O olhar, errante, procura uma mancha que não conhecêssemos, uma cor que o
fixasse. Ver nascer o sol, apreciar o cair da noite, o acre que fica no ar depois
dos corpos agarrados e suados rolarem no chão. O silêncio acompanha a escuridão
da noite. Sem lua. Sem palavras. Uma estrela no céu mais baixo, nuvens
carregadas, desenhadas a carvão. Fixamos aquele brilho, o mesmo brilho através
dos vidros das janelas a revelar os jacarandás mais tristes. Nada muda. Tudo
mudou. Aquela estrela nunca saiu do céu, mas nós nunca a vimos. Nunca nos
pertenceu? Não, nunca nada nos pertence, por inteiro. Somos como a estrela
solitária. Num céu muito escuro, ou carregado de estrelas. Por que insistes em olhar
para estrela? Não está lá ninguém. Ninguém. Nem o que somos. Ou pensamos ser.
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