quarta-feira, 18 de junho de 2014

Um candeeiro que veio de Paris




























Um candeeiro que veio de Paris

E, depois, há aquelas coisas-tralhas que guardamos durante anos, vão sobrevivendo às mudanças de casa, separações, às crises existenciais, e juntando-se às outras tralhas e coisas que vão entrando, encaixando, em cima umas das outras. Enchem-nos a garagem, a arrecadação, o vão da escada e com um bocadinho de esforço ainda dormem no corredor na casa dos nossos pais. Temos todos, as nossas existências atafulhadas de coisas, coisinhas, um dia, ainda hei de precisar desta caixa, esta saia foi comprada na primeira loja da Ana Salazar, a loiça não está partida - num almoço de família poderá fazer falta - e este candeeiro  veio do  marché- aux- puces de Paris, ai! este triciclo está em bom estado e serviu para os dois miúdos, os brinquedos estão intactos e a caixa monstruosa dos Legos, também. Tudo ali. Muito quieto e mudo, cheio de segredos e histórias. Juntemos a tudo isto os cadernos da Faculdade, as fotocópias dos livros esgotados de Paul Teyssier, de Freud e de Julia Kristeva, a máquina de escrever do avô, as edições repetidas dos livros RTP e as teses de mestrado e de doutoramento dos amigos - seria uma heresia deitá-las fora ! -  as Revistas  d’ O Expresso, d ‘O Independente, as Kapa,  as primeiras Sábado. Além dos álbuns de fotografias, as coleções de selos e os sapatos, que ajudaram a limpar uma ou outra lágrima. Olhemos, ainda que de relance, para tudo isto e temos ali a história da nossa vida. Acho que qualquer sociólogo poderia estudar, sem tropeções, só com esse olhar clínico as tralhas-coisas de que somos feitos. Coisas, bric-à-brac, objetos, entulho, inutilidades. Um dia, mais cínicos, cheios de boas intenções e ânimo, decidimos deitar tudo fora. Colocar tudo no lixo, sem pensar no que acontecerá ao candeeiro de Paris ou à cópia sublinhada e comentada da Psicopatologia da Vida Quotidiana. Uma ato falhado? Pois sim. Estamos a querer deitar uma vida inteira para o contentor mais próximo: não me apetece esta vida, estas pessoas, estas dores, este desgosto, este filho malcriado, estas raízes do cabelo que insistem em nascer brancas, aquela piscadela de olho, nem tão pouco o beijo mais suado, entre agora telefonas tu, agora telefono eu. Tudo para o lixo. Não é um suicídio. É deitar fora tudo aquilo de que já não gostamos, não precisamos, tudo o que nos faz sofrer. A vida que não escolhemos. Um suicídio não é irreversível, ao candeeiro de Paris podemos seguir o rasto e ao filho malcriado mandá-lo, por exemplo, para casa do pai. Ó mulher, por que não vendes tu esta tralha toda? Faz uma venda de garagem! Vende tudo a um euro, dá os brinquedos a Instituições que precisem, oferece o triciclo. Sim, tudo isso está apalavrado (palavra encanitante e sem significado). Já combinei, vêm recolher parte das coisas-tralha que foram uma família, na próxima semana. Os Legos são intocáveis e a máquina de escrever do meu avô também. Darei as roupas, o papel irá para a reciclagem, a loiça que não estiver partida permanecerá em caixotes mais pequenos, a saia da Ana Salazar é vintage e ainda me serve, os livros serão organizados e os que estão repetidos ficarão repetidos, talvez, os rapazes os apreciem. Continuo sem saber o que fazer ao candeeiro que veio de Paris. Não sei. Um projeto de vida viria a calhar, um caminho só meu. Apenas eu. Dois sacos de lixo já encheram o contentor mais perto, amanhã encherei mais dois ou três e, assim, com pequenos passos vou tornando a vida mais espaçosa. O tal projeto de vida a desenhar-se nas prateleiras arrumadas. Ainda incompleto, o tal projeto. Sim. Já sei! Quando descobrir o que fazer com o candeeiro do marché-aux-puces, o projeto de vida estará resolvido. Em paz. Mas eu não deitarei fora la lampe du marché-aux-puces. Não. Já decidi.

E tu já decidiste onde arrumarias o teu? Todas as pessoas têm um, porra! Ou uma Nossa Senhora de Fátima.

 




 

 

2 comentários:

  1. Projecto que nos assalta tantas vezes a cabeça, com outras palavras, com outros objectos. Leio-o aqui, escrito por alma mestra. Obrigada, L. David. É deveras um must.

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  2. Será geracional? Há em mim algo que repudia firmemente o minimalista, exatamente porque só admite as poucas memórias de um qualquer decorador de "take away" que ~nunca compreendeu o valor sentimental de bugigangas mil....Mas aquela pilha de fotocópias que insiste em mirar de soslaio os segundos da minha existência vai, assim que acabarem os exames. Os sapatos também são um problema: uns doem aqui, outros ali e, para remediar, vamos comprando cada vez mais e depois, com o preço a que está o dinheiro, quem é que se vai desfazer de coisas novinhas em folha que podem servir para uma ocasião ( qual?!!!!)....

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