domingo, 8 de junho de 2014

O Rui, eu e um par de olhos azuis




O Rui, eu e um par de olhos azuis.

 A última vez que desci contigo as escadas do Plateau, tínhamos passado a noite a dançar, eu era uma menina e líamos com gosto a Confissão de Lúcio, de Mário de Sá Carneiro, estou muito tranquila a falar destes nomes, porque  esta criatura  não se interessa por literatura, não sei se lerá as mensagens  e confessou-me  que quando tiver de usar óculos talvez, talvez recomece a ler. Esta madrugada, depois de o ter procurado, em vão, na cidade inteira, percebi que nada há de mais injusto e cruel que afundarmos o nosso olhar num outro olhar. As palavras valem muito pouco e, quando ao sentirmos a neblina que vem do Tejo, percebemos, ali, na Vinte e Quatro de Julho, com uns vapores de gin no ar, que  só precisamos das pessoas que connosco são capazes de partilhar um desgosto, uma alegria, um piropo.“És uma miúda engraçada”, dizias-me, tu, meu querido Rui, eu acreditava, comíamos um cachorro quente, discutíamos as trivialidades da vida e, se eu te  dissesse que eram  uns olhos azuis,  que me tinham deixado a pensar em pecados e afins,  dir-me-ias: “ Faz-te à vida!” Mas o Rui morreu há cinco anos, a vida divide-se em impostos, trabalhos, dinheiro escasso, doenças e negativas a matemática, e o melhor que eu sei dizer é : ” a minha avó tinha olhos azuis “e eu gostava muito dela.

Corri a cidade, à noite, fora de horas, e não os encontrei, não vi os olhos azuis.Da criatura que um dia talvez recomece a ler. Nada.  Só pura imaginação, fantasias e uma ou outra ponta de ego, mais ou menos inflamada. Sem  nenhum interessse. Talvez acredite em ti, Rui, esta noite, fizeste-me falta, sabes que, agora, não como cachorros, passo mais tempo sozinha, recomecei a escrever e não há um só dia em que não pense em ti. Estou um perigo: tive o azar de me deixar entusiasmar por uns olhos azuis. Hoje, precisei das tuas certezas, porque quando me dizias que uns olhos azuis valem tanto como os olhos de outra cor qualquer, eu acreditava.

 De madrugada, vinha do Tejo a neblina fria de que tu tanto gostavas, podíamos dar as mãos e rir até ao Calvário. Creio que a amizade é  a memória das mãos de um amigo nas nossas.

“ O sexo foi bom?”, eu nunca  te respondia , mas tu percebias e deixavas-me em paz o  tempo, suficiente, para eu organizar os livros, a tranquilidade, o quotidiano e a ansiedade.

Fazes-me falta, Rui
Muita falta.

Estás bem, aí, onde estás? E os olhos azuis que  recordarei, com nostalgia, serão os da minha avó. Está prometido. Lembras-te dela? Os miúdos estão a estudar muito e para a semana, recomeçarei uma nova série de exames médicos. A camisa preta que tresanda a tabaco irá para a lavandaria.
(Nunca conheci um fumador que odiasse tanto o cheiro a tabaco...Eu deixei de fumar, como sabes, mas o cheiro entranha-se, quando vamos aos sítios.)

Um beijo.





4 comentários:

  1. Lindo!.É coisa muito difícil atribuir palavras aos sentimentos sem cair na lamechice. Continuo a apreciar o que escreve e
    a espera do próximo. Obrigada!
    E, quanto aos exames, só podem correr bem!

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  2. "A amizade é a memória das mãos de um amigo nas nossas". Viva a síntese, tão gnómica.

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