Cala-te, por favor.
Escrevo. Respiro e oiço-te, voz. Acompanhas-me os passos, os gestos, pertences ao coro dos meus dias, vais
tecendo os teus comentários e não te coíbes de me criticar, dizes que estou no
mau caminho, que ando a dançar demais, (também bebo muito?), que combino mal os
vestidos, a pintura não condiz com a cor das meias, descuro a educação dos
miúdos e, muitas vezes, até, me acusas de me colocar em primeiro lugar, repetes
à exaustão que grito como o diabo. Dizes tu! Esta voz que me acompanha não é a
voz de um anjo da guarda, tenho de dizer-te, aliás, que, ontem tropecei nos pés, ou
numa pedra mais levantada, espalhei as fatias de fiambre e os bifes
pelo lajedo do pátio e o meu anjo da guarda - sempre ele - impediu-me de desfazer
uma dúzia de ovos, amolgar um par de óculos e o nariz. E, lá vieste tu - voz embirrante
- dizer que ando com a cabeça nas nuvens, que não sei onde ponho os pés e o blá,
blá, blá do costume. Desculpa, estou a ficar sem paciência. Ouvi dizer que há (quase)
um programa de televisão onde também aparece uma voz, assim. Irritante. Como tu.
Se insistes em dizer que durmo pouco e me alimento mal, mando-te, ‘sem dó nem
piedade’, fazer companhia à Dª Teresa Guilherme. Tens de perceber que não
ajudas nada e estás a tornar-te uma moralista irritante e beata. Percebe, lá de
uma vez por todas que tenho uma vida para viver, um caminho de pedras para
saltar, tropeçar, ou dar um pontapé. E lá estás tu… insistes na ideia absurda
de procurar alguém que me faça companhia, que me ajude a arrumar os papéis do
IRS, colocar os discos por géneros musicais, que me leve ao cinema, à praia,
essas coisas. Chega! Cala-te, tenta entender, estou bem assim e tu sabes muito
bem que as minhas lágrimas não são solidão, camas frias, ombro para descansar a
cabeça… Cala-te voz. Deixa-me em paz. As minhas lágrimas têm outra cor, outro
gosto, outro nome. E, se voltares a dizer-me que choro muito, vais de um pulo
só fazer companhia a alguém numa qualquer estação de televisão. Não tenho,
garanto-te, muitas dúvidas quanto à escolha a fazer. Ah! Agora, falas do meu
roupeiro, cheio de vestidos, camisas, sapatos, da imoralidade que é a
quantidade de lenços e écharpes que coleciono. Talvez não tenha tempo para as
usar todas, talvez, mas a tua constante insistência em chamar-me perdulária não
é muito encorajadora. Desde que me acompanhas que não oiço um elogio, uma piada
de muitas gargalhadas, um afago. Voz. Vai-te embora. Procura outra cabeça,
outra alma, outra pessoa. Alguém que ainda acredite no ‘poder da voz interior’,
na vida além da morte, no ‘poder transformador do amor’ - essas merdas todas
que me sussurras ao ouvido, quando os meus dias são mais longos, as noites sem
sono e a pensar em cigarros.
Sai da minha cabeça, voz. Sai de uma vez. Desaparece.
Não acredito nas tuas boas intenções. Procura à tua volta. Procura bem, não
faltará quem queira seguir as tuas palavras como uma bússola. Sem pisar o
risco. Eu já não te oiço: ensurdeceste a minha razão.
Adeus
Espetáculo! Lindo! Também já não aturar a minha voz!
ResponderEliminarEspetáculo! Lindo! Também já não quero aturar a minha voz!
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