terça-feira, 3 de março de 2015

Cala-te, por favor.





Cala-te, por favor.

Escrevo. Respiro e oiço-te, voz. Acompanhas-me os passos, os gestos, pertences ao coro dos meus dias, vais tecendo os teus comentários e não te coíbes de me criticar, dizes que estou no mau caminho, que ando a dançar demais, (também bebo muito?), que combino mal os vestidos, a pintura não condiz com a cor das meias, descuro a educação dos miúdos e, muitas vezes, até, me acusas de me colocar em primeiro lugar, repetes à exaustão que grito como o diabo. Dizes tu! Esta voz que me acompanha não é a voz de um anjo da guarda, tenho de  dizer-te, aliás, que, ontem tropecei nos pés, ou numa pedra mais levantada, espalhei as fatias de fiambre e os bifes pelo lajedo do pátio e o meu anjo da guarda - sempre ele - impediu-me de desfazer uma dúzia de ovos, amolgar um par de óculos e o nariz. E, lá vieste tu - voz embirrante - dizer que ando com a cabeça nas nuvens, que não sei onde ponho os pés e o blá, blá, blá do costume. Desculpa, estou a ficar sem paciência. Ouvi dizer que há (quase) um programa de televisão onde também aparece uma voz, assim. Irritante. Como tu. Se insistes em dizer que durmo pouco e me alimento mal, mando-te, ‘sem dó nem piedade’, fazer companhia à Dª Teresa Guilherme. Tens de perceber que não ajudas nada e estás a tornar-te uma moralista irritante e beata. Percebe, lá de uma vez por todas que tenho uma vida para viver, um caminho de pedras para saltar, tropeçar, ou dar um pontapé. E lá estás tu… insistes na ideia absurda de procurar alguém que me faça companhia, que me ajude a arrumar os papéis do IRS, colocar os discos por géneros musicais, que me leve ao cinema, à praia, essas coisas. Chega! Cala-te, tenta entender, estou bem assim e tu sabes muito bem que as minhas lágrimas não são solidão, camas frias, ombro para descansar a cabeça… Cala-te voz. Deixa-me em paz. As minhas lágrimas têm outra cor, outro gosto, outro nome. E, se voltares a dizer-me que choro muito, vais de um pulo só fazer companhia a alguém numa qualquer estação de televisão. Não tenho, garanto-te, muitas dúvidas quanto à escolha a fazer. Ah! Agora, falas do meu roupeiro, cheio de vestidos, camisas, sapatos, da imoralidade que é a quantidade de lenços e écharpes que coleciono. Talvez não tenha tempo para as usar todas, talvez, mas a tua constante insistência em chamar-me perdulária não é muito encorajadora. Desde que me acompanhas que não oiço um elogio, uma piada de muitas gargalhadas, um afago. Voz. Vai-te embora. Procura outra cabeça, outra alma, outra pessoa. Alguém que ainda acredite no ‘poder da voz interior’, na vida além da morte, no ‘poder transformador do amor’ - essas merdas todas que me sussurras ao ouvido, quando os meus dias são mais longos, as noites sem sono e a pensar em cigarros.

Sai da minha cabeça, voz. Sai de uma vez. Desaparece. Não acredito nas tuas boas intenções. Procura à tua volta. Procura bem, não faltará quem queira seguir as tuas palavras como uma bússola. Sem pisar o risco. Eu já não te oiço: ensurdeceste a minha razão.

Adeus

 

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