terça-feira, 24 de junho de 2014

Aristóteles não era belga





Aristóteles não era belga

 

Os miúdos estão em exames, estudam, estudaram muito. A vida é assim – trabalho, luta diária, as lágrimas também fazem parte e os sonhos são da cor da pele, nada mais que isso. Ouviam histórias ao deitar, eu ou o pai, sentávamo-nos numa cadeirinha muito pequenina, uma cadeira algarvia pintada à mão. Veio de casa do pai e, agora, tem em cima auscultadores, folhas soltas – um registo do tempo que passou. E passou muito tempo. “A aurora de róseos dedos…”, “Era uma vez um lago que queria ser mar…”, ficou guardado e muito bem guardado e aparecerá um dia destes, quando se olharem ao espelho. Estão gente, têm opiniões e dizem muitos palavrões. (É normal os miúdos, entre eles, dizerem tantas vezes ‘caralho’ e ‘foda-se’?).O mais velho pediu-me um jantar para comemorar o décimo sétimo aniversário. Ouvia Satie na minha barriga, um dia descobriu a valsinha “Je Te Veux”, do mesmo Erik Satie e ouvi-a e ouvi-a e ouvia  - (maldita tecnologia que tem repeat) e muito enfatuado dizia Ó mãe, não há pachorra para tanto abraço. Falava dos Teletubbies . Tinha razão. Ainda hoje não percebo como resisti a ouvir tantas vezes Caetano Veloso, nem como ainda aprecio A Flauta Mágica. Agora o segredo está em Santos. Em Santos?? Sim, mãe. Vamos todos e tu fazes aquele bacalhau da tua festa de anos e fazemos um jantar sentados à mesa. As raparigas vêm giras e os rapazes de blazer azul-escuro, concordas? Mãe, os meus amigos adoram-te. O mais novo não fala, não pediu nada, deveria ter ido a pé até Fátima, se eu acreditasse que Nossa Senhora sabe usar uma máquina de calcular e tivesse lido os resumos daquele Manual pomposo chamado Dicionário Terminológico… Mas, estou em crer que a Senhora deverá ter mais em que pensar. Estou, aqui sentada, bebo um Vodka Orange e espero acordar como acordei hoje. Isso basta-me. Vou perdoar O David Guetta e um senhor chamado Bon Jovi (talvez consiga fazer a seleção musical durante o jantar, mas não lhes imporei Chet Baker, nem Bill Evans, não se escapam,  garanto, ao Dark Side Off The Moon). Não tenho muitas certezas na vida, nem muitas “coisas” que gostasse de ter, mas o meu dia completa-se no fundo das suas gargalhadas, Às vezes, lá levam um estalo, ouvem um grito e sim, a família tradicional é aquela que aprendemos na catequese (eu fugia, quando podia, não fiz nem crismas, nem primeiras comunhões, tenho um pai que achava que eu devia ir brincar para o jardim, em vez de me enfiar numa sacristia bafienta. Obrigada, Papá e olha Tanqueray , continua  a ser o melhor gin de sempre). A Família feliz que se constrói num vestido de noiva e num ramo de flor de laranjeira. Um pai, uma mãe, avós primos, primas tudo isso…. E viveram felizes para sempre.Foi assim que aprendemos. Se houver aquele sentimento  - vago- chamado Amor, que suporta as roncadelas, o mau humor da sogra e a prepotência de um macho, a quem sempre sai a espinha do bacalhau à Braz. Essa  família conheço dos filmes da Meg Ryan. Com os meus avós, também, aprendi qualquer coisinha. Mas não soube fazer o trabalho de casa. Agora, nada disso me interessa . Falava de certezas, os meus adolescentes, têm, neste momento, o melhor do pai e o melhor da mãe. E nunca dirão que Aristóteles era belga, o London Underground  é um movimento terrorista , nem que o princípio do Budismo é cada um por si .

Faremos o jantar, ouviremos o que nos apetecer e ele irá com os amigos beber uma imperial, talvez duas, não o irei buscar, mas -falava de certezas- se eu lhe disser que às duas da manhã tens de estar em casa, ele será pontual.

Como se faz? Famílias disfuncionais? Famílias monoparentais?

Estas famílias têm de ser sempre infelizes, traumatizadas, com putos a roer as unhas até aos cotovelos? Não, não têm. Amar os filhos, mesmo quando são insuportáveis e acham que mandam em nós, ajuda muito. Dos pais esperamos que os amem também.E é quanto baste. Garanto!

Mas não é fácil e tem muito ranho e sangue à mistura.E sal.
E dor.

 

(a seleção musical é da responsabilidade do meu filho mais velho).








3 comentários:

  1. Mas não é fácil e tem muito ranho e sangue à mistura.E sal.
    E dor. Gostei, pois! Somos o melhor que podemos.

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  2. Texto sobre os fios fundamentais das teias familiares, a herança viva. Tão bonito.

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  3. Acredito que numa família monoparental não há desvios nem discrepâncias característicos das outras . Tenho em mãos um caso biparental de descrédito da biautoridade perante um adolescente, tão grave, que me faz erguer as mãos ao céu e agradecer o facto de cá em casa nunca ter tido de discutir estratégias que, até onde sei, resultaram plenamente. A verdade é que, por mais que digam os psicólogos, os "trabalhos de grupo" sempre me baralharam os fusíveis, pois tendem a ser um logro em que uns trabalham para todos partilharem os lucros. São os próprios que discorrem sobre os riscos da monoparentalidade que, frequentemente, se revelam inaptos para resolver os, às vezes bem pesados, que surgem em contexto biparental .Às vezes, pergunto a mim própria se, numa fase inicial, as famílias da espécie humana seriam biparentais ...nas imagens que nos aparecem da natureza vemos mais facilmente uma relação mãe-cria do que mãe-cria- pai.
    Como já estamos habituados, foi mais um bom texto, Linda!

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