Parabéns, Ernestina.
Há quem tenha uma melhor amiga, a tal amiga a quem se conta tudo, ouve
tudo e que está lá quando é preciso. Eu não tenho uma melhor amiga, tenho as
melhores amigas. Não são muitas, nem são virtuais. São verdadeiras e de Verdade.
Uma das minhas melhores amigas faz hoje anos. Sei que é um pouco mais velha do
que eu, um ano, dois anos? Não sei. Mas somos amigas há mais de trinta anos – desculpa
dizer isto, agora, toda a gente fica a saber que não somos raparigas novas, que
temos rugas, não escapámos à lei da gravidade e que meia-idade, talvez nos
fique bem. Pois, minha amiga de meia-idade, a nossa amizade é inteira. Chamas-te
Ernestina – «Mas quem é que se chama Ernestina?»
- perguntavas tu muito desolada, eu respondia: «Tu chamas-te Ernestina e o teu nome é uma maldade!». Ríamos. Mas
tinhas um apelido sonante e estrangeiro, quando te conheci: «Vês?! Já ninguém liga ao Ernestina.» Entretanto,
perdeste o apelido sonante, entre outras coisas que não interessam, nem são a
razão deste texto. Ficaste e serás sempre a Ernestina. A minha Ernestina. Já te
reconciliaste com o nome e com a tua madrinha (foi dela que herdaste o nome, não foi?), assim como eu já me
reconciliei com o meu. On s’habitue, c’est
tout! Conhecemos-nos num corredor do Departamento de Literatura, à procura de
uma sala de aula de uma literatura qualquer. Estávamos perdidas, não sabíamos
qual era sala e, se a memória não me falha, eu estava mais aflita do que tu. Tinhas
o cabelo comprido e aos caracóis muito escuros, preto-asa-de corvo (lembraste?), muito magra, os olhos a piscarem,
as unhas roídas até ao sangue e uma saia indiana às flores e às cores. Um
cigarro de SG filtro ardia-te entre os dedos e não tinhas contigo um único livro.
Pensei logo que eras o máximo. Os
meus sapatos de aplicação, a minha saia de pregas e a minha pasta de cabedal, à letras, pareceram-me sensaborões e,
alguns dias depois, já estava a arrumar no fundo da gaveta o look de intelectual séria, a promessa de ser
muito estudiosa e o orgulho de todos. Obrigada, Ernestina. Corria o fim da
década de setenta, a Faculdade era um sítio onde todos os dias acontecia uma
performance diferente, todos se conheciam e reconheciam, o Bar do rés-do-chão
era a nossa sala de estar. E estávamos bem. Começámos a ser as melhores amigas,
íamos a maratonas de cinema, conversávamos horas a fio sobre o sentido da vida,
os meus namorados, a poesia do Zé Gomes, a filosofia de Sarte, a política, os
nossos sonhos e receios, a parvoíce dos outros e, de vez em quando, Roland
Barthes e Kristeva lá nos faziam companhia. Com diletância, algum estudo, idas
à Biblioteca Nacional e horas de leitura, fomos tendo sucesso, tínhamos boas
notas nas frequências, tu muito melhor do que eu na Linguística, eu muito
melhor do que tu na Literatura, divertíamos-nos, éramos felizes (às vezes
achávamos que não, chorávamos um desgosto de amor, uma nota injusta, a solidão
que temíamos, o emprego que teríamos: seríamos escritoras, ou professoras?
Poetas?) e fomos construindo uma grande Amizade. Sempre fomos cúmplices. Sempre
rimos dos mesmos disparates. Inventámos ser mil personagens. Éramos vaidosas,
de vez em quando dou comigo a pensar como é que alguém poderia ter paciência
para nos aturar. Ernestina éramos umas estudantes
universitárias muito estilosas, partimos alguns corações e conseguimos algumas
proezas de que não me orgulho, mas que cumpriram (lembraste da ausência da
metáfora?).Um dia quente de julho, reunimos uns tostões e fomos fazer uma
permanente, no cabeleireiro mais barato e manhoso que encontrámos. Durante horas gritámos,
bem alto, em plena Avenida da Liberdade: «Meu
nome é Gal!». Doidas. Se algum dia escrever as minhas memórias
terei muito que contar e tu, Ernestina, farás parte delas, em quase todos os
capítulos. Depois, bem. Depois, cada uma de nós seguiu o seu caminho, viveu as suas
novelas. Afastámos-nos. Crescemos. Casámos e descasámos. Fizeste um doutoramento.
Eu fui para longe. Ernestina, a nossa amizade a tudo tem resistido. Ao tempo.
Aos filhos. Às rugas. À doença. À alegria. Tens estado a meu lado desde o momento
em que nos encontrámos naquele corredor do Departamento de Literatura, nos finais
dos anos setenta. És uma mulher brilhante. Estudiosa. Investigadora brilhante. Fazes
Palestras. Vais a Congressos. És convidada pelas melhores Universidades do mundo.
És mãe. Mãe de referência para mim. A tranquilidade e a serenidade são, não
raras vezes, um exemplo. Já não róis as unhas e andas a deixar de fumar. Aliás,
já deixaste de fumar várias vezes. «De alguma coisa teremos de morrer, não ?» Já me deste colo. Já me deste sermões. Já me
levaste a ver o mar sem que eu nada te pedisse. Tens sempre a casa muito arrumada
e tão bonita! A casa?! Não, as casas, porque já te vi construir sete? Oito
casas? Na cidade, no campo, na praia. Não, não é luxo. Não és rica. Mas fazes
milagres com o que encontras no lixo, ou numa loja qualquer. Depressão?
Tristeza? «Bora lá, decorar uma casinha?
Também podemos fazer uma festa? Ir comprar um maletini? Sim, pode ser nas lojas
dos chineses». Apenas te vi triste, mesmo triste, muito triste, uma vez?
Duas vezes? No entanto, tens chorado a meu lado, foste a minha família na sala de espera num hospital e és ainda mais, o que foste desde que nos conhecemos: uma melhor amiga. Obrigada, Ernestina.
Ainda rimos das mesmas coisas e sou capaz de jurar que se fôssemos ver o filme
American Gigolot, perderíamos o 38, no entusiasmo
da conversa. Ainda me ouves durante horas intermináveis e eu sei que não te canso,
que não te peso. Dias há, que não partilho contigo as minhas dores, porque sei
que passariam a ser, também, as tuas dores. Adoras os meus filhos. Estiveste, a
meu lado, quando eles nasceram e sei, porque conheço o brilho do teu olhar, que
também tens muito orgulho em mim. Eu sei, Ernestina, que gostas muito de mim.
E, sei também que tudo serias capaz de fazer pela minha felicidade. Eu sei,
Ernestina. As amigas, como nós, sentem essas coisas.
Parabéns, Ernestina. E não nos
preocupemos com a idade, é uma luta inglória e como dizem os teus filhos: Ninguém repara em nós. O que é
lamentável, porque uma amizade como a nossa deveria ser celebrada, todos os
dias, como uma lição.
Uma lição como aquelas que eu sei que dás aos teus alunos.
Parabéns, amiga de meia-idade, deixo-te com uma senhora que muito
aprecias.
(Quando ela vier a Portugal, iremos
vê-la. As duas jovens senhoras que têm o privilégio de escrever com as mesmas
letras a palavra Amizade.)
Parabéns, Ernestina.
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