quinta-feira, 25 de julho de 2013

A day in a life of a fool.


Quando entrei  na pastelaria, deixei  para trás um dia muito nublado e um vento que levantava a poeira e avermelhava os olhos. Senti um arrepio de frio nos braços e nas pernas. Àquela hora a pastelaria era um refeitório ruidoso. Nas mesas, os croissants mistos acompanhavam conversas remotas, pedaços de reclamações, chá frio e cabeças grisalhas muito penteadinhas pelo cabeleireiro de sempre.Juntavam-se os fatos cinzentos, as havaianas descaradas e os decotes avantajados. Era hora de almoço, um bitoque com ovo a cavalo, um mini prato do dia, uma imperial, um copo de vinho da casa, a sobremesa era por conta  e trazia caramelo. As batatas fritas podiam substituir o arroz, o preço era o mesmo. O cliente escolhia e tinha sempre razão. No ar, os pedidos dos empregados, o fumo da zona de fumadores, as graças das senhoras de vestido de seda e a boa disposição do patrão. Ainda assobiava  as sílabas finais. A  camisa branca e imaculada, o dedo mindinho e um grande anel de ouro diziam do sucesso do negócio. Fechado para férias de 5 a 15 de Agosto anunciava o regresso à terra que ainda lá estava. Correra-lhe bem a vida, os empregados obedeciam-lhe e não se metia em política. Ali nas Avenidas Novas a sua política era o trabalho e que não faltassem os pastéis de bacalhau. Servia toda a gente da mesma maneira e a sua " Pérola das Avenidas" ainda tinha o mesmo espelho de há trinta anos. A casa de banho tinha a chave no balcão. O chão já fora substituído e o balcão frigorífico com uma barra de cor de laranja e outra verde- ranho mostrava o pudim de ovos, os sumos bem fresquinhos e as talhadas de melão. O balcão era recente, as mesas e as cadeiras, muito limpinhas eram da mesma família do espelho e aguardavam as férias dos senhores doutores e que a crise abrandasse. O balcão é a montra: o cliente tem de escolher. Doce ou fruta. O preço tinha acompanhado o iva e o gosto gourmet dos clientes mais fiéis, que ali almoçavam durante a semana. Orgulhoso e à caixa garantia o pré-pagamento, ao balcão, e o empregado vai já atendê-lo, à mesa. Serviço asseado, comida caseira e clientela seleccionada.  Lá fora,um dia de Julho, sem sol e ventoso. Comeria qualquer coisa, a um canto, procurei a zona de não fumadores pedi uma sopa, um queijo fresco. Talvez uma peça de fruta e um café. Seria um almoço rápido - tinha consulta às duas e meia e a médica era pontual. Tentava alhear-me das conversas. O ruído dos copos e e dos pratos e dos talheres começavam a inquietar-me. Por um momento, levantei os olhos da tigela de legumes a boiar num caldo amarelado. Assustei-me. A colher na mão e o braço no ar. Paralisada. Olhava a figura gigante de um homem, que acabara de entrar. Muito alto. Muito magro. Cabelos brancos. Crespos. O casaco coçado, esfiapado nas mangas e na gola, a camisa de colarinho levantado, sapatos engraxados compunham um retrato de homem digno. Velho e triste. Quando se aproximou do balcão de cor dos tempos modernos, vi-lhe os olhos e as mãos. Um olhar que não se fixava. As mãos raspavam uma na outra. Longas e transparentes.Esfregavam-se no casaco,  mexiam o cabelo. Colavam-se e não conseguiam agarrar. Iam à boca. Puxavam o nariz, tapavam os olhos. Começou a estalar os dedos e a entoar uma canção. Em surdina. Quase em silêncio. Não se percebia o que cantava. Não conseguia ouvi-lo. Mas percebi-lhe o tom vago. Infeliz. Uma tristeza perturbante. Muito maior que o espaço que ocupava. Nas mesas as senhoras incomodavam-se. Abafavam-se as censuras. Um olhar de repulsa cúmplice atravessava a pastelaria e amarrotava as sedas e as poses. O ruído dos copos e facas abrandou. A voz impaciente de  intolerância, miséria esquecida e anel de ouro no dedo mindinho, fez-se ouvir. Definida e sem hesitações: " Vai-te embora maluco. Sai daqui imediatamente. Volta para o teu lugar, ali ao cima da rua. Vai-te embora. Sai. Rua. Maluco de um raio. Estás a incomodar as senhoras. Rua! Já disse!" O Gigante, muito trémulo. O olhar perdido. As mãos estendidas. Olhava para a porta. Olhava a cara do patrão. Não fixava o olhar, mas uma lágrima grossa soltou-se. Fechou a boca. Passou a mão pelos cabelos muito brancos. Encolheu os ombros, compôs a dignidade e saiu. Um único gesto. Dois passos e o vento de Lisboa, no mês de Julho, arrastou-o para longe. Deixei de o ver. Afastei o prato de caldo amarelo. Pedi a conta e saí. Sem fruta e sem café. 
O céu nublado fez-me companhia. Não senti o vento. Mas pensei no homem de anel de ouro no dedo mindinho, no balcão frigorífico verde-ranho. No homem que saiu da terra onde nasceu e que tem uma pastelaria nas Avenidas Novas. O homem que continua a ser a terra de onde nunca saiu. Lembrei-me de outros homens iguais a este. Lembrei-me do moço de Boliqueime. Lembrei-me do moço de Santa Comba Dão. Lembrei-me do moço de Santarém. Lembrei-me de outros moços e de outras moças. Homens e mulheres que vêem o mundo a preto e branco. E nem o verde-ranho distinguem.

A Day in a Life of a Fool, Cassandra Wilson
http://youtu.be/SHRn-uKViqg

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