terça-feira, 15 de outubro de 2013

Baseado em casos reais - Miguelito





Baseado em casos reais - Miguelito

Miguelito,

(não te importes que te trate assim, ninguém nos ouve, portanto o teu 1,85m não ficará arranhado), hoje, meu filho, falo-te por esta via. Os teus irmãos monopolizaram o Skipe, o teu pai está fechado no escritório, e eu tenho saudades das nossas conversas. Imagina, Miguelito, lá estou eu outra vez, que desde que te foste embora nunca mais tive licença para ver um daqueles documentários no Canal História, nem tenho com quem fazer teorias gerais por tudo e por nada. Não tenho grandes notícias para te dar, tu tens lido os jornais e vês os noticiários, estamos preocupados, já estávamos quando decidiste ir mudar de ares e fazer-te à vida, noutro sítio. Pensaste bem. Sou egoísta quando tenho saudades tuas. Tu estás bem. O resto foi o que deixaste – um país triste, pobre e desesperançado. Os sacrifícios são cada vez maiores, os ordenados mais escortinhados, há pouco ouvi as explicações de mais cortes nas pensões de sobrevivência, se não fosse o nosso país diria que é humor negro, o dinheiro está cada vez mais caro, diz a tua avó, o avô vocifera quando falamos ao telefone, continua a clamar, isso mesmo, adivinhaste, fui eu um oficial de abril, para ver esta cambada e por aí adiante, vocês falam quase todos dias, deves estar a par das suas queixas, temos sorte - os avós estão bem e de boa cabeça. Não queria que esta minha carta, já ninguém escreve cartas, fosse um rol de lamentações, não meu filho-mais-velho, mas está perto, olha, o nosso prédio, está tão animado que até dói, o filho do senhor Amadeu está desempregado, não pode pagar a creche, por isso, os miúdos passam o dia com os avós, ouvem-se, outra vez, crianças no prédio, a Dª Fátima é que não se conforma, depois de tantas privações e trabalhos tem os dois filhos em casa, tudo isto deixa o teu pai muito acabrunhado e dedica-se, cada vez mais, ao trabalho, compreendo-o, não tenho é ninguém para conversar, não quer sair de casa, e há meses que não vamos ao teatro…enfim, nada que tu não conheças. O teu irmão Paulo passeia a tua Tata, trata-lhe do pelo e é ele que se ocupa da ração, assim tenho menos saudades do mano, é o que ele diz, mas no outro dia tive de esconder a chave do teu quarto, porque andava a tirar fotografias à tua bateria, estás a ver para quê? Não estás? O inter-rail, o inter-rail e não se cala com os itinerários, abre mapas, espalha-os no chão, e passa mais horas no Google do que a estudar. Ele e a Tata, a Tata e ele, parecem-me felizes, divertem-se e a tua Tata ladra quando ele imita as gaivotas. A Teresa enche a sala de amigas e roupa fashion (será uma boa economista, apesar do corte na semanada, o quarto dela continua ser uma sucursal da Bershka), o pai diz que quando ela não está  a dormir, passeia as minissaias e fala ao telemóvel. A menina do papá continua muito engraçada, alegre, está fazer-se uma bonita mulher, nos dias mais felizes o teu pai diz que ela é parecida comigo, mas a tua cabeça era melhor e gostavas de ler, ela toda caracóis, olhos e gloss, vai para a escola passear, sem azia, mãe, os stôres ainda não marcaram os testes, tomara já que o mano venha de férias, porque não vou a Santos desde o verão. Estamos todos nas nossas vidas e só esta semana as temperaturas começaram a baixar, tu sabes como eu odeio o calor… As flores murcham numa semana. Tenho muitas turmas, muitos alunos, horas intermináveis na escola, reuniões, papéis, decretos-lei, diretores, matérias  para preparar, testes, metas curriculares, coisas que não te interessam, sabes que não sou de me queixar, mas estou, ou melhor, estamos todos fartos do Crato, ainda há horários sem professores e professores sem horário. Triste, muito triste. Tenho medo de não me reconhecer. Os miúdos são o reflexo do que se passa em casa, os dias para eles são sempre iguais e a escansão das sílabas métricas ou o estudo dos advérbios de predicado é-lhes tão estrangeiro e distante como Harare ou Vancouver (lembraste quando jogávamos scrabble e às cidades desconhecidas?). O tempo passa tão depressa, eu para aqui a falar, a falar, como é meu hábito, eu sei, não me ouvem, à terceira frase já desligaram, ou interromperam a perguntar o que era o jantar, o significado de uma palavra difícil, o paradeiro dos ténis (como se os ténis andassem sozinhos!). Talvez esta conversa te inspire e me escrevas uma carta, destas, sem selo, a contar de ti, dos teus amigos, do teu dia, das namoradas???? Tens comido bem? Andas bem agasalhado? Tens ido ao cinema? Precisas de dinheiro? Como tens de gerir muito bem o teu dinheiro….Continuas a gostar do trabalho? Organizas-te com as aulas na Faculdade? Tanta pergunta, mãe! O coração tão apertado de mãe é assim para o secante e nós não são somos nenhuns bebés. Para mim, serão sempre!  É a minha condição – tiveram azar, para além de mãe sou um ser humano e mulher. Pois, como tu costumas dizer se um elefante incomoda muita gente, uma mãe incomoda muito mais. Não gosto da comparação, mas talvez tenhas razão. Adoro-te meu príncipe-mais-velho.

Juízo, ouviste?

Beijos meus. O pai pede-te que lhe telefones, (a pagar no destino, sim, claro), os teus irmãos pensam muito em ti e a Tata já está menos chorosa – pudera, o teu irmão não lhe dá paz .

Mais beijos da mãe, daqueles repenicados à tia Custódia, ela gostava tanto de ti.

Beijos. Beijos

Os teus irmãos fartam-se de gozar comigo, porque entre um livro e outro passeio no FaceBook, mas não somos amigos – era só o que faltava!

(Gostaste da música que escolhi?)

 

 

 

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