sábado, 12 de outubro de 2013

Conforto



CONFORTO

Abre a porta do roupeiro, passa as mão pelos casacos, pelas saias, pelas calças. Descobre em cada peça uma diferença, um lugar, os cheiros. Agora não lhe apetecem as memórias, nem as calças dois números acima, nem a camisola de gola alta preta. A gola do frio, do outono, do conforto. Poderemos nós mudar o conforto? Nunca tinha pensado nisso. Claro, mudamos tanta coisa. Mudamos a cor da roupa interior, o lugar dos quadros, a lista do supermercado, também podemos mudar o conforto, A gola preta ponho-a  num  saco. Já  não me  serve. A cor preta?! Bem a cor preta ainda é um conforto e um hábito. Serena-me, não por a minha alma ser escura, como me dizem, mas porque a cor  preta é  uma segunda pele. A analogia é barata e pouco erudita, mas que diabo, estou só a escolher roupa. A mudança do conforto está a ganhar forma. Passou, mais uma vez, a mão pelas cores penduradas e encostada ao tempo e a um par de calças voou até há uma vida atrás. A maldita memória a empurrá-la, a tentá-la. Viu-se num alvoroço. A passear, olhos brilhantes e pele arrepiada, a rotina banal. Sorridente. A fé no outono. Sem sombras. Sem interrupções. Tudo a acontecer tão depressa, as palavras doces, a poesia, o fundo dos copos. - “Os copos são outros e no fundo dizem Ikea”. A tentadora memória bem-humorada! As palavras de Gedeão “Pensar em ti é coisa delicada./É um diluir de tinta espessa e farta/é o passá-la em finíssima aguada/com um pincel de marta.[…]” O eco ali a mexer nas suas coisas. Tudo misturado. Saberão os poetas o que fazemos com as suas palavras? Estava difícil a escolha. Sabia que teria de vestir uma coisa qualquer. Quente. Preto - as outras cores estavam muito largas. O tempo, a piscar no relógio da mesa- de-cabeceira, avisava-a que tinha de se despachar. Cumprir horários também era um conforto. Ficaria assim. Não gostava de chegar atrasada, preferia esperar. Era uma maneira de dar forma à expectativa. Um tempo seu: ninguém precisava de saber as lutas que travava naqueles minutos que antecipavam as horas, em ponto. Dizia sempre, em ponto. E não me veem chegar. Olha para a prateleira das camisolas, arrumadas por espessuras, mais simples, teria de ser mais grossa um bocadinho. O outono chegara e trouxera aquele frio que apetecia. Ficaria assim. Autumn Leaves ou Les Feuilles Mortes, tanto faz. Era bonito e ela gostava. Ouvia as versões todas. Ouvira-as na outra vida e continuaria a ouvi-las. Há coisas que nunca deito fora. Estão certas. Uma canção, um par de calças (36 a cinzento na etiqueta, pois),uma camisola às riscas e o conforto estava quase escolhido. Teria de limpar o cotão que se acumulara, arrumar as saias. Bem. Só faltava deitar fora algumas memórias: não eram boas, nem más, não as queria, e pronto!” Não contes do meu vestido…”, a poesia era sua e assentava-lhe bem. À justa. Não encolhia, nem alargava. Só penso em parvoíces. Estava guardada. As interrupções não lhe pertenciam, também não estavam na lista e, assim como, na saúde e na doença, tinham vindo sem aviso. O espelho está no mesmo sítio, a imagem - quero lá saber da imagem – estou um bocadinho mais confortável e não quero chegar atrasada. Eu disse 22 isso, dez da noite. Em ponto. Hoje mudei-me um bocadinho.

 

“Não contes/ do meu vestido[…]” são dois versos do poema Segredo de Maria Tresa Horta

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