CONFORTO
Abre a porta do
roupeiro, passa as mão pelos casacos, pelas saias, pelas calças. Descobre em
cada peça uma diferença, um lugar, os cheiros. Agora não lhe apetecem as
memórias, nem as calças dois números acima, nem a camisola de gola alta preta.
A gola do frio, do outono, do conforto. Poderemos
nós mudar o conforto? Nunca tinha pensado nisso. Claro, mudamos tanta coisa.
Mudamos a cor da roupa interior, o lugar dos quadros, a lista do supermercado,
também podemos mudar o conforto, A gola preta ponho-a num
saco. Já não me serve. A cor preta?! Bem a cor preta ainda é
um conforto e um hábito. Serena-me, não por a minha alma ser escura, como me
dizem, mas porque a cor preta é uma segunda pele. A analogia é barata e pouco
erudita, mas que diabo, estou só a escolher roupa. A mudança do conforto está a ganhar forma. Passou, mais uma vez, a
mão pelas cores penduradas e encostada ao tempo e a um par de calças voou até
há uma vida atrás. A maldita memória a empurrá-la, a tentá-la. Viu-se num
alvoroço. A passear, olhos brilhantes e pele arrepiada, a rotina banal. Sorridente.
A fé no outono. Sem sombras. Sem interrupções. Tudo a acontecer tão depressa,
as palavras doces, a poesia, o fundo dos copos. - “Os copos são outros e no
fundo dizem Ikea”. A tentadora memória bem-humorada! As palavras de Gedeão “Pensar em ti é
coisa delicada./É um diluir de tinta espessa e farta/é o passá-la em finíssima
aguada/com um pincel de marta.[…]” O eco
ali a mexer nas suas coisas. Tudo
misturado. Saberão os poetas o que fazemos com as suas palavras? Estava
difícil a escolha. Sabia que teria de vestir uma coisa qualquer. Quente. Preto
- as outras cores estavam muito largas. O tempo, a piscar no relógio da mesa-
de-cabeceira, avisava-a que tinha de se despachar. Cumprir horários também era
um conforto. Ficaria assim. Não gostava de chegar atrasada, preferia esperar. Era
uma maneira de dar forma à expectativa. Um tempo seu: ninguém precisava de
saber as lutas que travava naqueles minutos que antecipavam as horas, em ponto.
Dizia sempre, em ponto. E não me veem
chegar. Olha para a prateleira das camisolas, arrumadas por espessuras, mais simples, teria de ser mais grossa um
bocadinho. O outono chegara e trouxera aquele frio que apetecia. Ficaria assim. Autumn Leaves ou Les Feuilles Mortes, tanto faz. Era bonito e ela
gostava. Ouvia as versões todas. Ouvira-as na outra vida e continuaria a ouvi-las.
Há coisas que nunca deito fora. Estão certas.
Uma canção, um par de calças (36 a cinzento na etiqueta, pois),uma camisola
às riscas e o conforto estava quase escolhido. Teria de limpar o cotão que se
acumulara, arrumar as saias. Bem. Só faltava deitar fora algumas memórias: não
eram boas, nem más, não as queria, e pronto!” Não contes do meu vestido…”, a
poesia era sua e assentava-lhe bem. À
justa. Não encolhia, nem alargava. Só
penso em parvoíces. Estava guardada. As interrupções não lhe pertenciam,
também não estavam na lista e, assim
como, na saúde e na doença, tinham vindo sem aviso. O espelho está no mesmo
sítio, a imagem - quero lá saber da imagem – estou um bocadinho mais
confortável e não quero chegar atrasada. Eu disse 22 isso, dez da noite. Em
ponto. Hoje mudei-me um bocadinho.
“Não contes/ do meu
vestido[…]” são dois versos do poema Segredo de Maria Tresa Horta
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