(Lou Reed, Transformer, a ouvir desde 1976)
A partida para a guerra
em África já não nos amedrontava, as turmas eram mistas, as salas de cinema
passavam filmes novos, as ruas coloriam-se. Chegava gente de um mundo diferente
do nosso. Gente feliz. Gente infeliz. E começávamos a gostar de poesia. O coração
partia-se ao som da música que ouvíamos no jardim, no carro roubado ao pai, na
estrada a caminho da praia e nas noites mais longas de um verão que ansiávamos desde
janeiro. Andávamos em bando, vestíamos saias indianas, tínhamos o cabelo muito
comprido, éramos freaks, admirámos o punk, dançámos flamenco e rock. Pulávamos
da varanda para namorar, driblávamos as ordens superiores, seguíamos o exemplo
dos irmãos mais velhos, olhávamos com espanto o que vinha de Londres e
Amsterdão, iniciávamo-nos nos paraísos artificiais, na sangria, no desafio, no
que somos e construíamos sem perceber. A liberdade via-se nas ruas, nos sonhos,
nos direitos que se desenhavam iguais para todos, podíamos ser o que quiséssemos,
mas o futuro era a amizade, ver nascer o sol, as tardes na praia nos dias de
setembro que não tinham fim. E a música. E as vozes que ouvíamos. Estudávamos. Pouco, mas éramos
curiosos e o mundo estava à nossa espera. Tínhamos missões a cumprir. Mais longe.
Gostávamos de ler e procurávamo-nos nas letras das canções que ouvíamos, nos
livros de poesia que trocávamos. Filhos de Torremolinos e Viagem ao Mundo da
Droga também nos passaram pelas mão, perderam a capa e algumas folhas, o bando
leu-o, mas aqueles universos eram uma miragem de contornos indefinidos. Irreais
e perigosos. Pouco a pouco, fomos fazendo as nossas escolhas. Umas mais
acertadas que outras. Morreram-nos alguns. Apareceram crianças. O bando
separou-se. Creio que é o que acontece a todos os bandos que crescem juntos a
ouvir a mesma canção. Tínhamos sonhos e, se as ruas da Vila eram o nosso quintal,
o tempo estava noutro sítio qualquer. Crescemos. Já não andamos em bando, mas
ainda sabemos uns dos outros. Passeámos pelo lado mais perigoso, fomos James
Dean, pelo menos, por um dia e quaisquer que tenham sido as cidades que
atravessámos, we are going to reap just
what we sow.
Obrigada, Lou Reed.
( Transformer de Lou Reed, foi produzido pelo próprio e por
David Bowie e é lançado em dezembro de 1972.
É o primeiro disco a solo do ex-Velvet Underground. Ainda tenho o disco em
vinil. Não me lembro onde o comprei.)
Digo contigo: obrigada, Lou Reed. Passei o dia a ouvir Perfect Day, numa mistura de alegria, de tristeza, de respeito tremendo pela lição da liberdade.
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