Baseado em
casos reais
No bairro
onde moro, pacato e virado para o Tejo, não há muito movimento, há poucos
cafés, jacarandás ao longo das ruas, cães asseados, crianças a jogar à bola e
adolescentes a fumar às escondidas. No meu bairro vivia-se bem e a vidinha, arranjadinha
e com ar puro, era soalheira e pacata. Um bom lugar para viver. Com Tejo e o
horizonte até à Trafaria. Tudo certo e familiar, quase íntimo. Um dia um supermercado
luxuoso, estrangeiro e normalizado instalou-se duas ruas a baixo da minha. Salamaleques
e copos de Porto na inauguração, meninos e meninas fardados a rigor, consumo à europeia
a ensombrar a vida às pequenas mercearias, ao “lugar” da fruta, à papelaria
e ao quiosque. O nome sonante ocupou o bairro e impôs as vaidades e o queijo importado.
Civilizado e clean. A vida do bairro
mudou. Queixa-se o senhor Zé, o senhor Paulo, a Dª Rosa, o senhor Fernando,
enfim, todos os senhores, que nas últimas décadas sustentaram e
alimentaram - e bem ! - este bairro com
rio e sossego. Eu continuo a preferir
escolher a fruta, encomendar a carne, discutir o calor fora de época, as
misérias do treinador mal comportado, isto é, descer a rua, encontrar as caras
que sempre me trataram bem, viram crescer os meus filhos e com muito carinho me
tratam por menina, apesar de nunca me terem conhecido menina. Vou aquele café e
compro o jornal no mesmo quiosque desde que moro no meu bairro. Às vezes, vou à
pastelaria dos bolos de chocolate, ou à padaria que também vende café, ao
balcão está a Dª Lurdes que pergunta a toda a gente, como uma saudação: “Está
melhorzinha?” Respondemos com alegria, a bica é bem tirada e a simpatia dispensa
o açúcar ou o adoçante. O quiosque pertence a uma simpática família. Um casal,
dois filhos, estudados e trabalhadores. Estão sempre dispostos, vendem cromos da bola, imprensa estrangeira, tabaco,
lotaria, euro-milhões, bilhetes de autocarro, fósforos grandes e pensos-
rápidos. Eu gosto deste quiosque e desta família. São gente do bem. Um dia
destes, enquanto folheava uma revista de moda, “Veja à vontade, as fotografias
são muito boas e ver não estraga”, observo a chegada de um homem alto, fato
completo, cinzento e barrigudo, tresandava a perfume caro. Altivo: “_ Tens o (?!) Economist? Sabes o que é? É uma
revista estrangeira muito importante, de Economia? Em inglês? Estás a perceber?
–“ Sim, conheço muito bem. Tenho um doutoramento em Economia, numa área muito
específica de que nunca deve ter ouvido falar. Lamento, mas vendi o último há
pouco. “ Vi os olhos brilharem-lhe quando respondeu :“ Já não tenho nenhum exemplar do The Economist “. Articulou na perfeição o título. O homem baixou a cabeça. Desdenhoso. Encolheu a arrogância e
virou as costas. Ficámos uns momentos, a olhar uma para a outra, sorriso
entreaberto e coração apertado. Os olhos ainda lhe brilhavam quando recebi o
troco. Em silêncio. Arrumou as revistas, guardou o dinheiro, inclinou-se e debaixo
da bancada tirou um exemplar - “ Não me apeteceu vender-lha.
Trata-me sempre por tu e é muito emproado. Não fico mais pobre e talvez ele perceba…Talvez não. Estou cansada de enviar currículos e responder a anúncios. Boa tarde, professora. Volte sempre”
Minutos depois, entrei em casa, poisei na bancada da cozinha as
peras e o pão e olhei para o Tejo que entretanto ficara cinzento e baço.
Os olhos desta escrita vêem de maneira incrível o que deve ser visto. Parabéns pelo texto, é muito bom.
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