segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Baseado em casos reais.




Baseado em casos reais 

No bairro onde moro, pacato e virado para o Tejo, não há muito movimento, há poucos cafés, jacarandás ao longo das ruas, cães asseados, crianças a jogar à bola e adolescentes a fumar às escondidas. No meu bairro vivia-se bem e a vidinha, arranjadinha e com ar puro, era soalheira e pacata. Um bom lugar para viver. Com Tejo e o horizonte até à Trafaria. Tudo certo e familiar, quase íntimo. Um dia um supermercado luxuoso, estrangeiro e normalizado instalou-se duas ruas a baixo da minha. Salamaleques e copos de Porto na inauguração, meninos e meninas fardados a rigor, consumo à europeia a ensombrar a vida às pequenas mercearias, ao “lugar” da fruta, à papelaria e ao quiosque. O nome sonante ocupou o bairro e impôs as vaidades e o queijo importado. Civilizado e clean. A vida do bairro mudou. Queixa-se o senhor Zé, o senhor Paulo, a Dª Rosa, o senhor Fernando, enfim, todos os senhores, que nas últimas décadas sustentaram e alimentaram  - e bem ! - este bairro com rio e sossego.  Eu continuo a preferir escolher a fruta, encomendar a carne, discutir o calor fora de época, as misérias do treinador mal comportado, isto é, descer a rua, encontrar as caras que sempre me trataram bem, viram crescer os meus filhos e com muito carinho me tratam por menina, apesar de nunca me terem conhecido menina. Vou aquele café e compro o jornal no mesmo quiosque desde que moro no meu bairro.  Às vezes, vou à pastelaria dos bolos de chocolate, ou à padaria que também vende café, ao balcão está a Dª Lurdes que pergunta a toda a gente, como uma saudação: “Está melhorzinha?” Respondemos com alegria, a bica é bem tirada e a simpatia dispensa o açúcar ou o adoçante. O quiosque pertence a uma simpática família. Um casal, dois filhos, estudados e trabalhadores. Estão sempre dispostos, vendem cromos da bola, imprensa estrangeira, tabaco, lotaria, euro-milhões, bilhetes de autocarro, fósforos grandes e pensos- rápidos. Eu gosto deste quiosque e desta família. São gente do bem. Um dia destes, enquanto folheava uma revista de moda, “Veja à vontade, as fotografias são muito boas e ver não estraga”, observo a chegada de um homem alto, fato completo, cinzento e barrigudo,  tresandava a perfume caro. Altivo:  “_ Tens o (?!) Economist? Sabes o que é? É uma revista estrangeira muito importante, de Economia? Em inglês? Estás a perceber? –“ Sim, conheço muito bem. Tenho um doutoramento em Economia, numa área muito específica de que nunca deve ter ouvido falar. Lamento, mas vendi o último há pouco. “ Vi os olhos brilharem-lhe quando respondeu :“ Já não tenho nenhum exemplar do The Economist “. Articulou na perfeição o título. O homem baixou a cabeça. Desdenhoso. Encolheu a arrogância e virou as costas. Ficámos uns momentos, a olhar uma para a outra, sorriso entreaberto e coração apertado. Os olhos ainda lhe brilhavam quando recebi o troco. Em silêncio. Arrumou as revistas, guardou o dinheiro, inclinou-se e debaixo da bancada tirou um exemplar -  “ Não me apeteceu vender-lha. Trata-me sempre por tu e é muito emproado. Não fico mais pobre e talvez ele perceba…Talvez não. Estou cansada de enviar currículos e responder a anúncios. Boa tarde, professora. Volte sempre”  

 Minutos depois, entrei em casa, poisei na bancada da cozinha as peras e o pão e olhei para o Tejo que entretanto ficara cinzento e baço.

1 comentário:

  1. Os olhos desta escrita vêem de maneira incrível o que deve ser visto. Parabéns pelo texto, é muito bom.

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