segunda-feira, 28 de abril de 2014

Finíssimo.




 Finíssimo.

No meu bairro, tranquilo e virado para o Tejo, há já algum tempo um Supermercado de luxo. A pastelaria onde, às vezes, me oferecia o prazer de um pequeno-almoço e o lugar da fruta do Sr. Zé e da Dª Fátima fecharão em breve. O meu bairro perderá o ar de bairro simpático, bem frequentado. Passará a ser um bairro burguês, de gente vaidosa e arrogante. Nem todos, claro, tenho vizinhos simpáticos, gente de bem, vizinhos e vizinhas que apanham com um saquinho de plástico e deitam no contentor do lixo os presentes dos seus canitos (como se diz na minha terra). Nada tenho contra cães que usam a rua como WC, se os seus donos forem civilizados. Tenho vizinhos que conheço há dezoito anos e me cumprimentam, tenho outros que foram meus alunos e moram, ou na casa dos pais, ou na casa que era dos pais. Na casa em frente mora um médico que me ajudou num febrão de um dos meus filhos, ao fim da rua, mora um dos políticos mais simpáticos que conheço. Tenho a certeza de que, apesar de não passear o canito na rua, muita gente me conhece. Os meus filhos têm como amigos, desde sempre, alguns vizinhos. Jogaram à bola e andaram de bicicleta nas ruas do bairro, experiência pouco comum na cidade de Lisboa. Moro num bairro simpático, arejado e luminoso. Um bairro que até se pode orgulhar de ter uma igreja de arquitetura arrojada e colorida, quanto à igreja e à sua cruz deitada não me alongarei.Voltemos às pessoas bem educadas e ao Supermercado de luxo. Como hoje é domingo há poucos autocarros e, cheia de boas intenções, vontade de dar a volta à crise e organizar a semana, isto é, rechear o frigorífico, fui ao Supermercado de luxo. Senhoras muito bem postas, crianças a berrar que queriam ovos Kinder, senhores indignados porque já não há educação, rapazes borbulhentos a ajudar as mães, uma rapariga a empurrar a cadeira de rodas da avó e uma colaboradora - como agora se diz - fardada a rigor e com uma toquinha de rendas na cabeça (mas hoje não é domingo? pensei, os colaboradores já não folgam ao domingo? devo ter feito uma cara tão espantada que a rapariga, bonita e sorridente, encolheu os ombros, virou as costas e seguiu para o corredor da fruta), falta, nesta descrição, a referência a vários senhores elegantes nas suas calças domingueiras, de bombazina já coçada, que, de cachimbo apagado, vão comprar a garrafa de vinho, o jantar congelado, o saco de gelo, o uísque de malte. Finíssimo. Tudo muito a valer bons cartões de crédito e muito chique. Pois é. O supermercado fino do meu bairro é muito bem frequentado, tão bem frequentado que hoje fui, ali, às claras, incomodada, assediada. No corredor da fruta, ouvi a melhor fruta é a menina, olhei para esquerda e para direita, estaria a falar comigo? Sim, maçãzinha de Alcobaça é consigo que estou a falar, como mulher honrada não tem ouvidos, continuei o meu caminho, muito perturbada, confesso, e desejosa que na charcutaria não houvesse ninguém. Tinha duas pessoas à minha frente, arrisquei o fiambre. Com esse casaco tão largo não sei se o seu presunto é bom, a mesma voz, o mesmo cavalheiro, afastei-me, aguardei a minha vez e olhava desesperada para o empregado que aviava uma mãe de família que deveria ter vinte filhos e gostar de todas as variedades de fiambre e queijo, então boneca não vai um paiozinho do lombo? Nesse momento, o empregado percebeu a minha aflição e chamou um colega para me ajudar. Eu tremia de raiva e indignação, estava disposta a chamar o segurança, joguei ao elegante senhor, um olhar ameaçador e de repugnância, apanhei o fiambre e corri para a caixa. Acrescente-se que, além do funcionário da charcutaria, ninguém percebeu o meu embaraço. Procurei a caixa com menos gente, olhei para a porta da rua, certifiquei-me da presença dos seguranças, respirei fundo e esperei a minha vez, percebi que o imbecil, idiota, canalha, ordinário e todos os outros nomes que me passaram pela cabeça tinha desaparecido, não o vi até onde o meu olhar discreto chegava, deve estar no raio que o parta, estúpido. Tudo isto me passava pela cabeça, chegou a minha vez, uma coisa, outra e mais outra, no tapete rolante, a conta, os sacos, o cartão, tudo fiz a uma velocidade que fez de mim, aos olhos da menina da caixa, uma pessoa muito mal educada e stressada. Agarrei os sacos e saí do Supermercado chique, fino e tão bem frequentado. Finíssimo. Como um dos sacos tinha ovos, parei uns instantes para os compor e equilibrar o peso. Então boneca, queres ajuda? Levas aí muito peso? Deixa-me ajudar-te, sou um cavalheiro. Ai, e agora? Pouso os sacos, mando-o à merda? Chamo o segurança, que chatice! (não pensei chatice, pensei num palavrão), um idiota alto, bem vestido, grisalho, pareceu-me que já tinha bebido mais do que a conta. Ai, o gajo está com os copos, vou acelerar. Corro e vou para casa, não me apanha. Nestes segundos de hesitação, pernas a tremer e ódio ao sexo masculino em geral, oiço Olá stôra, não sabia que conhecia o pai? Pai conhece a minha stôra? Foi minha stôra de Português. Então stôra está melhor? Que bom vê-la! O energúmeno perdeu a cor da cara, a voz, a pose e deveria ter perdido muito mais, estendeu-me a mão, deixei-o de mão estendida e, como de ranhosa e pindérica não tenho nada, desculpei-me com as mãos cheias de sacos, a pressa, os miúdos à espera, adeus, minha querida, gostei de a ver. Virei as costas e vim para casa. Por dentro, fiquei sem saber se deveria chorar, ou rir à gargalhada. Não chorei, nem ri. Arrumei os congelados e sentei-me a escrever.Tenho o coração apertado, penso na filha, boa aluna, boa cabeça, um ser humano. Um maiúsculo Ser Humano. Ainda é nela que penso. Nem me apetece chamar nomes ao pai, porque, se for alguma coisa parecida com um homem, viverá com muita dificuldade tão grande humilhação.


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