terça-feira, 22 de abril de 2014

O Senhor do fato cinzento.





O senhor do fato cinzento.

Conhecerem-se num comício, um sábado à tarde. Saíram juntos, por acaso, cumprimentaram-se como camaradas, ela dissera-lhe que tinha gostado de o ouvir, ele convidou-o para um chazinho de limão e uma bolinha de Berlim, ela aceitou e ficou a ouvi-lo. Molhavam uns bocadinhos da bolinha no chá, enquanto ele falava. Ele gostava de falar, gesticulava, gostava de se ouvir dizer a bem da democracia, o povo deve ter qualidade de vida, todos deveriam ter casa própria, os velhotes têm se ser apoiados, o país precisa de se modernizar, inovar, fazer coisas novas, não devemos ter dívidas, ela ouvia-o, com muita atenção, admirava-lhe os gestos a acompanhar o fervor da vontade e das boas intenções, a voz alterada, as calças do fato cinzento muito vincadas. O cabelo muito penteado, nem uma pinguinha de caspa nos ombros, a pele sem um sinal da idade, o sorriso contido, mais vaidoso, nas histórias que contava, histórias da política, quando era mais novo. Conhecia todas as figuras importantes do partido. Apreciou o gosto dele pelas cantorias. Era humano, verdadeiro. Gostou logo dele, tinha futuro, um bom emprego, conhecia a vida, era ambicioso. Tudo lhe parecia perfeito. AI!  Parece que não existe, que saiu de um filme com a Júlia Roberts e tem tantos amigos, tão sincero. A mãezinha haveria de gostar dele, está sempre a dizer que eu estou encalhada e gorducha, que ninguém repara em mim. Combinaram outros chazinhos, sardinhas assadas nos Santos Populares, arriscaram uns camarõezinhos na Trafaria, umas matinés mais românticas no Colombo. Apareciam juntos nos comícios. Namoravam a sério. Ela esmerava-se nos fatinhos XXL da C&A, ele imperturbável e fiel ao fato cinzento sem um pinguinho de caspa nos ombros. Nem consigo acreditar, eu  ainda a morar com os meus pais, num prédio de três andares, sem elevador. Eu sem carro, sem graça! E  o que  mãezinha gosta dele! O paizinho nem se fala. Um senhor, a subir na empresa, quase diretor geral. Como o paizinho costuma dizer: é bom ter muitos amigos. O paizinho só não apreciava as conversas de política. Mas aninou-se quando ele subiu a Diretor Geral da empresa e arranjou um emprego como motorista ao primo Joaquim. Namoraram muitos jantares com uma caixinha de chocolates  - ele nunca se esquecia, eram marca branca, mas ele explicava à mãezinha que eram iguais aos belgas. Ele conhecia a Bélgica. Fui lá com o partido, uma viagem política. O coração dela a encher-se de orgulho, a mãezinha a dizer à vizinha do 3º direito é o rapaz com quem qualquer mãe sonha casar uma filha. Os vizinhos a cumprimentarem com uma vénia o senhor diretor geral. Que elegante é o namorado da filha dos vizinhos, tem um ar de pessoa séria, ajuizado, nem parece de agora. Tiveram sorte, coitadinhos. A filha, até, está mais bonita. Com muito preceito, noivaram, compraram uma casinha na linha de Sintra, são mais baratas e podemos comprar-te um carrinho. Casaram na igreja do bairro onde os pais dela viviam. Um vestido de noiva com um véu comprido, o fato cinzento um bocadinho mais escuro. Almoço numa quinta da Malveira muitos senhores importantes, senhoras de chapéu. É gente da política e das empresas dele, esclarecia a mãe da noiva. Viveremos felizes para sempre, como nos romances, pensava ela. Núpcias em Torremolinos, tenho este sonho desde miúda, não é uma viagem muito cara. Dinheiro não é problema, faço questão, dizia o senhor diretor geral de fato cinzento mais escuro.

 Continuam muito felizes, sempre juntos, ele continuou a subir na empresa. É administrador de muitas outras. Os fatos cinzentos são feitos por medida, usa uns óculos dourados de marca, continua a gostar de se ouvir falar. Ela continua a gostar de o ouvir, fazem férias no Algarve. A felicidade com que sempre sonhei. Pena que ele e o paizinho se tenham desentendido. Tinha pena. Via  a mãezinha às escondidas. Falava-lhe dele e das mentiras que se contavam. Só injustiças. O povo não sabe o que diz! Coisas da oposição, a mãezinha sabe o que é a oposição? Estamos pouco tempo juntos, coitadinho. Farta-se de trabalhar. De viajar. Não percebo o desgosto do paizinho, se as empresas não dão lucro, ele tem de despedir pessoal, até despediu o primo Joaquim. Coitado! Voltou para a terra. Levou para casa uns dinheirinhos. Se não fosse ele!!! Mas arranjou emprego para muitos amigos. E que jeitoso que ele fica no seu fato cinzento, quando aparece na televisão! O paizinho não percebe de administração de empresas, é o que é! É preciso inovar.

Ela está um bocadinho mais magra. Ele continua com a mesma cara de rapaz com quem qualquer mãe gostaria de casar uma filha. Vão juntos para todo o lado e, sempre que podem, ficam sentados, lado a lado, nos comícios do partido.

Que bem que lhe assenta o fato cinzento, nem um pinguinho de caspa nos ombros, nem nada.

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