sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Guadiana é o rio que corre na minha aldeia.




O Guadiana é o rio que corre na minha aldeia.

Entrámos no autocarro noventa e três, pessoas, mochilas, hospedeira, WC e serviço de bar permanente. Vínhamos da cidade, queríamos o sol e o rio. O miúdo sentou-se a meu lado, não pediu o lugar  da janela enroscou-se na cadeira, poisou a cabeça no meu ombro e adormeceu. Dormiu sempre, o cansaço ainda lhe tirava a força e as gargalhadas. Recostei-me, olhei para cidade que se esvaía nas cores do entardecer, o rio muito escuro adormecera ao sol a estrada começava a abrir-se, no écran minúsculo contava-se, a várias vozes, o nine eleven, a hospedeira perguntava se queríamos comer, beber. Não, não quero nada, muito obrigada. Quero chegar depressa, pensei. Mas o caminho ainda eram cinco horas e o livro de Jeffrey Eugenides estava intacto a muitas páginas do fim. Teria tempo, nenhuma cabeça me chamou a atenção e com as dezenas de dedos a correr nos tablets não se ouvia nenhuma conversa que valesse um ouvido à escuta. Olhei para o céu azul escuro, pintado a vermelho e laranja, a lua muito cheia, ainda, transparente num céu a mudar, a voar sobre as nossas cabeças. Fiquei a olhar a estrada de riscas brancas. Não tirava os olhos da lua, ouvia o suspirar sereno do miúdo o tiroteio do écran, embalada deixei que a memória se instalasse. Outras luas cheias, abraços apertados, amigos à volta de uma mesa, conversas intermináveis à beira rio, canções em castelhano, saias levantadas a rodar numas sevilhanas improvisadas, as mão apertadas de unhas roídas a prometer amor eterno, as primeiras festas até de manhã, os amigos que já partiram, as caras de todos a ganharem rugas, as histórias de encontros e desencontros que fazem de nós o que somos, o que queríamos ser quando fôssemos grandes, os filhos, os pais, o colo dos avós, a casa que já não existe, o jardim de jogar às escondidas, as diferenças que se diluem nas ‘pazes’ que já fizemos, o que tínhamos para dizer, a esplanada que escolheríamos, as viagens por fazer e no rolar dos quilómetros a lua foi crescendo. Ficou branca no céu muito escuro, o Guadiana não tardaria a chegar. O miúdo acordou, pediu água, arrumei o livro no saco, encostei a cabeça à cadeira e esperei. Estamos quase a chegar a casa. A minha casa?! Não, à casa dos meus pais. A casa é dos avós. A rua?! É a rua principal da minha terra (alguém disse que todos temos uma terra – um lugar a que pertencemos), a minha terra é esta e o Guadiana o rio onde cresci. Gosto do Tejo, olho-o todos os dias, andámos de costas voltadas, durante uns tempos e reconciliámo-nos. Do Guadiana nunca consegui separar-me, não me lembro de uma zanga, ou de uma discussão.
A lua estava cheia quando chegámos e o rio lá estava a namorá-la.
Voltarei para o Tejo, para a minha casa, mas o Guadiana ficará a correr na minha  aldeia.

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