sábado, 5 de outubro de 2013

Coisas de gaja





Coisas de gaja.

Só as mulheres percebem as dores das outras mulheres. As dores que vêm do fundo, do buraco. De um vazio e da tristeza de não se saber viver assim. Apanham os cacos, encontram-nos. Põe-nos no lugar. Encaixam as peças que se soltam, como se de um grande puzzle se tratasse, daqueles muito difíceis, com vários tons da mesma cor, céus intermináveis, castelos, caras com rugas, pestanas e tudo. Percebem as lágrimas, os soluços. Sem pudor, sem vergonha. Revezam-se para tomar conta dos filhos, das angústias, da lista das compras, das casas, umas das outras. Não precisam de pedir licença para entrar. Já lá estão. Sempre estiveram. Ou acabaram de chegar. Advinham o desgosto, a perda, a solidão, a crueldade dos filhos, a adversidade. O luto. Percebem tudo. Unem-se. Encontram-se nas vontades. Dão-se umas às outras. Amizades de uma vida inteira, ou amizade de várias vidas. Ou não. Acertam as deixas. Cúmplices, sabem os textos de cor, aconselham a cor dos sapatos e a desculpa. Zangam-se e dão colo. Acabam as frases, ensaiam juntas as queixas. Calculam o passo seguinte, mostram, partilham e dão as mãos. Fazem promessas às santas da sua devoção. E cumprem. Guardam segredos. Não pedem troco. Emprestam os melhores vestidos, a carteira para as festas, as gargalhadas. Brilham-lhes os olhos de alegria, ou de água, o que for, o que tiver de ser. Respeitam-se e defendem-se. Acodem aos pedidos de socorro. Do salto partido ao verniz das unhas. São coisas só delas. Coisas que só elas sabem: coisas de gaja.

2 comentários:

  1. Sim, só as mulheres sabem fazer tudo isto. Por isso me dói tanto quando as vejo usar estas características em sentido contrário. Adorei o teu texto.

    ResponderEliminar
  2. E refazer a maquilhagem à amiga que a desbotou porque se debulhou, e tem as mãos a tremer. E emprestar livros de poesia.

    ResponderEliminar