O espelho de Laura
Há dias que vivem bem connosco, outros que nem
por isso. Há dias que a imagem que o espelho nos devolve é exatamente aquela
que queríamos ver. Há dias que o espelho mudou de lugar e, outros ainda, que o
espelho nos devolve a pessoa que pensamos ser. O espelho olha-nos incrédulo e
nós que pensávamos ver a nossa imagem, ao contrário: o lado direito no lado
esquerdo e o lado esquerdo no lado direito, vemos a nossa alma de pernas para o
ar. Há dias. Há espelhos. Acreditamos. Acontece. Parece muito simples. E há a
Laura. Hoje, Laura gostou de si. Gostou do que viu ao espelho, gostou do jeito,
dos olhos e da ilusão. Gostou. Talvez porque as dores tivessem desaparecido,
talvez por pensar que se repetirmos, muitas vezes, uma ideia, uma ilusão, um
desejo, acabamos por acreditar que acontece. Laura acreditava que tudo poderia
acontecer, se acreditasse. Acreditar, apenas. Talvez. Acreditava que aquele poderia ser um dia igual
a outros. Um dia normal. Trabalho. Papéis. Sonhos. Compras. Um café com um
amigo. Não estava mal aquela imagem de Laura ao espelho. Não, não estava. Saiu.
Enrolou o sorriso num sorriso mais bonito
e quis fazer com o domingo um dia feliz. Em paz, compraria o jornal.
Conversaria. Talvez encontrasse alguma resposta. Alguma cara conhecida. Talvez.
E encontrou. Perfeito. Melhor: foi encontrada por um rosto de felicidade
roubada, às claras, à felicidade de alguém. Sorriso satisfeito, rasgado,
triunfante. Um sorriso feliz com os dentes à mostra. Um sorriso rodeado de
amigos, de família satisfeita. Ficou com a imagem que vira ao espelho e de que
tanto gostara virada ao contrário. De
repente, ficou reduzida a pó, menos que pó, menos que nada. Não ela não deveria
estar naquela fotografia: aquelas pessoas não lhe pertenciam. Aquele lugar
feliz não era seu. Laura não conseguiu evitar as lágrimas. O soluço estalou na
sua boca. De soslaio, olhou para a sua imagem refletida num outro espelho – o vidro
de uma montra serviu. Estava distorcida e sem cor. A verdade em que queria
acreditar, afinal, era uma felicidade que não lhe pertencia. Cravou as unhas
nas mãos fechadas. Ergueu a cabeça. Engoliu o tempo e o sonho. Apressou-se. Desceu
a escada rolante. Fugiu para a porta de saída. O frio e a infelicidade
apanharam-na de surpresa. Seguiria para casa. Arrumaria em qualquer lugar a
fotografia que acabara de encontrar. Pensou em várias respostas.
Escrever-lhe-ia. Poderia escrever-lhe uma carta de amor. Laura lembrou-se que
ele gostava das suas cartas. Cartas de amor. Sim. Arranjaria uma desculpa e
escreveria uma carta de amor. Laura gostava de acreditar e de escrever. O frio
que lhe entrou pelo decote da camisa acordou-a do torpor magoado. Não. Hoje,
Laura não faria nada disso. Chegaria a casa, olharia para o espelho e perguntaria
pela Laura. A Laura que há algumas horas ali estivera, naquele mesmo lugar, à
frente daquele espelho. A Laura tão sorridente e a acreditar.” Espelho, viste a Laura?”
(Então, espelho, não
respondes?)
(texto publicado no FB em março de 2013 e agora rescrito para publicação a 31 de maio de 2013)
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