domingo, 30 de junho de 2013

esta depressão que me anima


A Naifa, Esta depressão que me anima




     « e este calor, e as folhas amarelas que murcharam, uma a uma, as pétalas da coroa imperial caíram, o pólen ficou espalhado em cima da mesa, um pó castanho e fininho, que é - ou deve ser - como  uma existência triste, que se desarranja, e ocupa uma sala inteira, e esta tristeza que transpira e as mangas arregaçadas a fazer de conta que se deitou mãos à obra e os livros  todos fora do sítio, porque os meninos não estão. E a vizinha chorou o dia todo a morte do gato e o relatório que tem de ser escrito, mesmo não tendo nada para dizer, e o Chiado tão longe, porque no caminho se tropeçava na experiência radical do campo na cidade e os dias tão sem uma aragem a mudar a sombra dos  jacarandás e os dias dos meses com quarenta dias e o verão a aquecer as paredes e a tornar a pele mole e o Guincho que nunca mais vi e as dores, por aqui, ainda a cumprimentar-me na sua condição mais essencial de mal inevitável e as senhoras cantam e os CDs todos fora do sítio e a conversa hoje foi comigo - eu que sou tão má companhia! E a lembrança de momentos felizes, e a inércia que não permite descobrir os filmes em cartaz e os velhos que envelhecem, cada dia, mais um bocadinho e o telefone não tocou ( hoje não seria um bom dia para consultas de mercado) e Nelson Mandela está quase a partir e, afinal, há vidas que valeram a pena ser vividas e um jornal a fazer uma sequela de Os Maias e depois outro fará uns episódios de O Malhadinhas, com a ajuda de um  glossário e um dia destes alguém se lembrará de dizer que afinal a  poesia não serve para nada: o Tony já tem poesia que chegue - até as galinhas e os coentros o  percebem. As televisões a oferecer milhares de euros e as pessoas a acreditarem e a certeza que somos apenas nós e ninguém que testemunhe o dia que não foi igual ao anterior, nunca é - como as mãos: não há duas iguais, e as notícias dizem que o moço de Boliqueime nada diz e já há incêndios a ocupar os bombeiros e D. Manuel Clemente foi a Itália buscar um fato novo, talvez traga umas novas orações, ou um milagre escondido no bolso de dentro e as marisqueiras vendem, nas montras, marisco comprado por tuta-e-meia e os meus olhos estão inchados e amanhã não estarão muito melhor, mas como eu tenho esta depressão que me anima, vou escrevendo estas balelas e, como diz o poeta, aproveitarei a dor pessoal para me sentir maior, deve ser mais ou menos assim, mas isso agora não interessa nada, porque somos apenas uma partícula, muito menos que uma partícula, e amanhã talvez a Praça do Comércio já não tenha salsa, nem caganitas de ovelha e esta depressão que me anima passeará comigo e poderei pensar em qualquer coisa e ficarei mais animada, porque, apesar de tudo, sempre tenho esta depressão que me anima. 
E não usei tantos pontos finais, preferi o e exprime junção, ligação e adição e mais - muitas - outras coisas e a esta depressão que me anima está tudo ligado.»

(…) Vivo do que me dão/nunca falto às aulas de esgrima/e todos os dias agradeço a deus/esta depressão que me anima (…)

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