A Naifa, Esta depressão que me anima
« e este calor, e as folhas amarelas que
murcharam, uma a uma, as pétalas da coroa imperial caíram, o pólen ficou
espalhado em cima da mesa, um pó castanho e fininho, que é - ou deve ser - como uma existência triste, que se desarranja, e ocupa uma sala inteira, e esta tristeza que
transpira e as mangas arregaçadas a fazer de conta que se deitou mãos à obra e
os livros todos fora do sítio, porque os
meninos não estão. E a vizinha chorou o dia todo a morte do gato e o relatório
que tem de ser escrito, mesmo não tendo nada para dizer, e o Chiado tão longe,
porque no caminho se tropeçava na experiência radical do campo na cidade e os
dias tão sem uma aragem a mudar a sombra dos jacarandás e os dias dos meses com quarenta
dias e o verão a aquecer as paredes e a tornar a pele mole e o Guincho que
nunca mais vi e as dores, por aqui, ainda a cumprimentar-me na sua condição
mais essencial de mal inevitável e as senhoras cantam e os CDs todos fora do sítio
e a conversa hoje foi comigo - eu que sou tão má companhia! E a lembrança de
momentos felizes, e a inércia que não permite descobrir os filmes em cartaz e os
velhos que envelhecem, cada dia, mais um bocadinho e o telefone não tocou (
hoje não seria um bom dia para consultas de mercado) e Nelson Mandela está quase
a partir e, afinal, há vidas que valeram a pena ser vividas e um jornal a fazer
uma sequela de Os Maias e depois outro fará uns episódios de O Malhadinhas, com a ajuda de um glossário e um dia destes alguém se lembrará de dizer que afinal a poesia não serve para nada: o Tony já tem poesia que chegue - até as galinhas e os coentros o percebem. As televisões a oferecer
milhares de euros e as pessoas a acreditarem e a certeza que somos apenas nós e
ninguém que testemunhe o dia que não foi igual ao anterior, nunca é - como as
mãos: não há duas iguais, e as notícias dizem que o moço de Boliqueime nada diz
e já há incêndios a ocupar os bombeiros e D. Manuel Clemente foi a Itália
buscar um fato novo, talvez traga umas novas orações, ou um milagre escondido
no bolso de dentro e as marisqueiras vendem, nas montras, marisco comprado por tuta-e-meia e os meus olhos estão inchados e amanhã não
estarão muito melhor, mas como eu tenho esta depressão que me anima, vou
escrevendo estas balelas e, como diz o poeta, aproveitarei a dor pessoal para me
sentir maior, deve ser mais ou menos assim, mas isso agora não interessa nada,
porque somos apenas uma partícula, muito menos que uma partícula, e amanhã
talvez a Praça do Comércio já não tenha salsa, nem caganitas de ovelha e esta depressão
que me anima passeará comigo e poderei pensar em qualquer coisa e ficarei mais
animada, porque, apesar de tudo, sempre tenho esta depressão que me anima.
E não usei tantos pontos finais, preferi o e exprime junção, ligação e adição e mais - muitas - outras coisas e a esta depressão que me anima está tudo ligado.»
E não usei tantos pontos finais, preferi o e exprime junção, ligação e adição e mais - muitas - outras coisas e a esta depressão que me anima está tudo ligado.»
(…) Vivo do que me dão/nunca falto às aulas de esgrima/e
todos os dias agradeço a deus/esta depressão que me anima (…)
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