segunda-feira, 17 de junho de 2013

Queixa das Almas Jovens Censuradas (poema de Natália Correia, interpretação José Mario Branco)






QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS

 

Quando, a treze de maio, iniciei a minha aventura na blogosfera, sem nenhuma inspiração divina, nem influência de Belém, decidi escrever sobre a vida, o amor, a morte, a felicidade, a infelicidade, o medo, a música, o chocolate, as saudades, enfim, a vida e as coisas da vidinha e, acima de tudo e de todos  escrever, desafiar a folha em branco, carpir mágoas, encontrar histórias e brincar com as palavras. Também com sangue, coração, lágrimas, até ao osso. Decidira não me deixar arrastar pelo desânimo da crise, nem pelas dores deste país que já não conheço, não por não querer participar na res publica, mas porque queria que a minha escrita fosse feita de palavrar, sem outro dever e intenção. Fui ingénua, quando pensei que o cartão de cidadão e o número de contribuinte se pudesse guardar na carteira  servindo apenas  interesses burocráticos. Agora, culpo-me por me ter reduzido, desta forma tão displicente (arrisco: a palavra é forte), a uma fazedora de literatura  - ai de mim! - com mais ou menos espuma, com mais ou menos estilo ou tesão (epíteto escolhido por um amigo, epíteto no masculino, pois claro), uma palavrosa leviana entretida com o seu umbigo. Devaneios e desculpas arrumados, introdução longa concluída, levanto-me,  escrevo e grito, deito para fora raiva, sentimento de injustiça desalento e desânimo. A solidariedade  e o gosto pela minha  profissão tomaram-me de assalto, isto é, a partir de agora serão esses dedos que irão percorrer o teclado.

Nas últimas horas, tenho ouvido impropérios - variados e de cores diferentes - insultos e outras tiradas do mais fino recorte literário, contra os preguiçosos, faltosos, egoístas e incompetentes professores. Os professores estão a prejudicar os alunos, os professores estão a esquecer-se do 'superior interesse dos alunos', os professores têm demonstrado a sua irresponsabilidade e blábláblá. Chega! Agora, grito eu: sou professora de alma e coração! Desde que me perguntaram a primeira vez: O que é que queres ser quando fores grande? Dou aulas, sim, são dadas, porque o preço é tão baixo, que não encontro outro verbo mais apropriado. Adiante. Estou no meu trigésimo segundo ano letivo e tenho dedicado grande parte da minha vida ao estudo e à leitura para a preparação de aulas, trabalho, em média, por semana, muito mais de quarenta horas. Eu e tantos outros que conheço. A minha escola  tem os equipamentos degradados, paredes rachadas, vidros partidos, persianas que não sobem nem descem, insuficiente número de auxiliares de ação educativa, instalações sanitárias insalubres e  tudo o resto que se possa imaginar numa escola que esteve dois anos à espera "de obras extraordinárias" que acabaram por ir sabe-se lá para onde...Acrescente-se que as turmas têm entre tinta a trinta e três alunos, sentados e arrumadinhos em salas onde cabem vinte e oito, no máximo,  trinta alunos - com muita boa vontade. Aliás, a minha escola funciona a boa vontade. Computadores por dois ou  três alunos? O que é isso? Uma miragem. Quadros negros, normais, os de sempre, onde se escreve com giz branco? Devem ser meia dúzia. Salas para trabalhos de multimédia (estratégia tão profícua e recorrente nos programas que preparam os alunos portugueses para os desafios europeus)? Temos uma onde bem sentados e cobertos de boa vontade cabem vinte e cinco pessoas, professor incluído. Écran, aquela tela larga e branca onde se mexem animais pessoas e coisas, não sei se teremos algum. Papel para fotocópia a preto e branco? Temos pouco. Para fotocópias a cores não há dinheiro. Salas de trabalho para professores? Onde calha. Se calhar, faltar algum professor. Laboratórios equipados de acordo com as exigências dos programas? Mais ou menos, pura magia dos professores das áreas científicas. Uma boa biblioteca? Sim, temos estantes com livros muito bem organizados, na melhor sala da escola  - a mediateca - que funciona como sala de estudo, de reuniões, de palestras, de representações teatrais, concursos literários e de línguas. Uma sala. Vinte mesas algumas cadeiras. Uma sala. Às vezes está fechada porque não há ninguém disponível para poder receber e trabalhar com os alunos. Eu estou a fazer o retrato da minha escola. Acredito que, salvo mais um vidro partido ou uma racha na parede, o retrato deve ser  igual a tantas e tantas outras escolas neste país. No país profundo, o tal, o real. E este retrato peca por defeito, não me quis alargar nas lamentações. Mas temos bons resultados nos exames nacionais, temos alunos de primeiríssima água, professores de excelência que se desdobram em reuniões intermináveis, afogam-se em decretos-lei, agonizam em legislação. Funcionários diligentes. Trabalha-se de janeiro a dezembro. A minha escola, os professores da minha escola, os funcionários da minha escola respeitam os alunos e são respeitados. Funcionam todos com boa vontade. É a minha escola - há dezassete anos que faço parte desta minha escola. Não é a escola ideal, perfeita - essa escola não existe! Então expliquem-me, se souberem, quem tem prejudicado os alunos? Quem todos os anos letivos, uns a seguir aos outos, tem deitado fora ‘o superior interesse’ dos alunos? Quem é que lei, atrás de lei, tem demonstrado uma grande e Superior irresponsabilidade? Quem é que governo sim, governo sim tem dado provas de grande incompetência?  Não têm sido os professores. Não. Se existe ensino público de qualidade é porque HÁ MUITO BONS PROFESSORES espalhados por este  - quase - país. Dia dezassete haverá greve aos exames, já houve greve durante o período destinado às avaliações do final do período. Muito bem, abençoadas greves e, se não tiverem servido para nada, se nenhuma das reivindicações for atendida, um mérito, pelo menos um,  estas greves tiveram: os professores mexem com a sociedade civil. Os professores existem. Os professores são gente. Os professores são gente de bem. Os professores trabalham e, como diz uma amiga minha, fazem-no por amor, porque interesse não têm nenhum!( Se tiverem trabalho. Se ficarem colocados. Se tiverem horário.) Se os alunos não fizerem exame de Português no dia dezassete, farão noutro dia. As férias marcadas com a família ficam comprometidas, pois ficarão. Quando os médicos fazem greve não se adiam as operações? Quando os pilotos fazem greve não aumentam  as filas de espera nos aeroportos? Quando os maquinistas fazem greve não chegamos atrasados aos empregos? Então se a greve não for sentida, na pele, por todos, para que servirá então? Não nos esqueçamos que quem corrige as provas de exame são os professores, sim, também, terão as suas férias, as suas vidas comprometidas, as famílias em alvoroço. Se depois das férias, se tiverem férias, ainda tiverem emprego! Porque os professores também são pessoas, gente, com sangue, com cabeça, com tristezas, com alegrias, com doenças. Pensem nos professores, pensemos nos professores. Não me dirijo a si, senhor ministro (com minúscula) porque não costumo falar com pessoas que me desrespeitam, mas seria bom que, de vez em quando, se olhasse para os professores e os víssemos. Forma do verbo ver. Quanto ao resto não me pronuncio, não acredito nas aparições de Nossa Senhora de Fátima, nem no subsídio de férias em junho, nem no moço de Boliqueime. Coisas minhas.

 

Daqui a pouco os alunos realizarão, ou não, o exame de Latim e de Português, eu ficarei em casa, estou doente, mas é ao lado de todos os que, como eu são professores, que me poderão encontrar.

 

Bem hajam!

 




















1 comentário:

  1. Excelente texto, Linda.
    Vou partilhá-lo nos grupos de professores de que faço parte, no fb.
    Obrigada. Beijinho

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