Na véspera, ao jantar
comi arroz de polvo, não sou grande apreciadora, mais tarde, tu virias a
detestar. Uma vez, dissemos-te, para te convencer a comer, que era arroz de
salsichas chinesas e tu respondeste, com uma colher cheia de arroz a olhar para
nós inteligente e alegre: “Arroz de salsichas chinesas?! Isto é arroz de
polvo, arroz de polvo, mãe”. Tinhas razão. Se não tivesses, comido eu não me
importaria, nem teria coragem para te contrariar. Outras dias, houve em que não
precisei de te dizer nada. Há dias, em que não preciso de te dizer nada. Nasceste
no dia a seguir a eu ter comido o arroz de polvo, foi esse o jantar, mas podia
ter sido outro. Era uma quarta-feira. À noite, a Maria Bethânia cantou no
Coliseu. Nasceste eram quatro horas da tarde, estava muito calor e a manhã
cinzenta coube numa janela do Hospital Santa Maria. Nasceste bem, nasceste como
o César e eu não me importei. Nasceste rosado, perfeito, careca. Choraste no
momento exato. Vieste para o meu peito e, quando olhei para ti, chorei. Não chorei
muito, não queria que me conhecesses a chorar. Nasceste bem. Poderias ter ido
para a capa da Pais e Filhos, mas eu não deixei: queria-te só para mim. “Parece-se com o Menino Jesus”, disse
várias vezes a tua avó. “Esta minhoca é
minha, e já não é minhoca, “ dizia a médica que nos apresentou um ao outro.
Passeaste ao seu colo enquanto as minhas pernas acordavam. Andaste de elevador,
foste apresentado aos teus avós e estiveste muito tranquilo em todos os abraços
que te quiseram agarrar. “Este é o menino
mais bonito do hospital. É o bebé do dia e hoje nasceram muitos”. Eu tinha trinta e oito anos e estava
apavorada, e agora Zé? E agora José? E tudo foi tão fácil, comias (pouco, é
verdade, mas só nos primeiros dias) e dormias. Dormias. Gostas de dormir. Não gostavas
de chorar e quando começaste a ver o mundo já tinhas a cabeça muito firme e
segura. Riste muito cedo. Tudo te fazia rir e rias para todas as pessoas que
falavam contigo. E eram muitas. Eras muito bonito. Ainda és. Quando deste os
primeiros passos, eu estava ao teu lado e tu querias água. Rua e mãe foram as tuas
primeiras palavras. Gostavas de passear e a rua
era um sítio de cores e perguntas. Éramos felizes. Nasceste feliz. Ainda hoje,
quando estou muito cansada e oiço o mundo que não imaginei para ti, penso nas
tuas gargalhadas, amo-te um bocadinho mais e fico em paz. Momentos de muita
paz. Trouxeste este amor sem tamanho. Nasceste bem. Nasceste feliz e cresceste
muito depressa. Gostaste da escola do recreio e de ter amigos. Fazes amigos,
assim como ris, com o coração, com os olhos. Gostas de filmes sobre a Segunda
Guerra Mundial. E, se não fosse a barba que já não te dá sossego, ainda
construirias muitos castelos e exércitos de Lego. És generoso. Mas como hoje
fazes dezasseis anos nem vou dizer da tua teimosia, nem da tua vaidade. (“ Como é possível os meus colegas nunca
terem ouvido falar de Picasso?”). O tempo para ti cabe numa hora, num
minuto, num segundo, tens a tua medida e o teu relógio. Às vezes, penso que as
tuas horas têm mais minutos do que as minhas. Um dia disseram-me que o ruído
não te incomoda e a que a estupidez é, para ti, o pior mal da humanidade. “Sem dramas”, concluíram. Concordei.
Concordo. Por cima do teu sorriso benevolente, aceitarias - imperturbável - uma
chuva de meteoritos ou um avião de papel a voar à tua volta. Tens dentro de ti
uma força que eu não conheço. E és gentil. Gostas de pensar: “Pode sentir-se para dentro?”
perguntaste, uma vez, à beira mar.” Sim,
pode-se, Claro!” Respondi. “AH! Então
está bem!”. Talvez, nesse momento, tenhas decidido como deverias olhar para
o mundo, para a vida, para as pessoas, para as coisas.” Olha, meu anjo bom, eu ainda não sei!”. Hoje, fazes dezasseis anos e
eu estou, outra vez, apavorada: e agora, meu anjo bom, que vida será a tua? Que
mundo será o teu? Nem tu, nem eu sabemos. Mas com a tua coragem e amor à vida,
continuarás a rir (também de ti próprio) e construirás os teus castelos, amarás
as tuas rosas e farás do mundo um lugar mais saboroso. Leva o tempo que
quiseres – ainda tens muito para gastar. Parabéns, José e obrigada pelo “Gosto muito de ti, mãe”, todas as
noites. Nunca te esqueces. Obrigada, José por todas as vezes que me dizes “Calma, mãe. Tem calma”.
Tens razão, meu anjo
bom, o importante é estarmos aqui e gostarmos tanto um do outro.
(Quando tudo corre bem
e estamos mais felizes, trato os meus filhos por “anjo bom”, eles nunca se
importaram, gostam e eu também)
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