quinta-feira, 20 de junho de 2013

JEZEBEL








                                                      JEZEBEL
Muito direita e muito magra. Muito loira e ruiva. Um loiro fulvo. Branca- transparente, a cor da pele. Olheiras nos olhos claros, não sei bem se são verdes. Claros. Talvez cor de avelã. Olhos claros. Garanto. Talvez azuis. Não sei bem, não fixei a cor. Indefinida. O brilho de um olhar muito inteligente é o que me lembro de ver, desde que a conheço. Conhecemo-nos na família, entre livros e arroz de conquilhas. Também comíamos gelados coloridos, protegidos do calor dos nossos dedos por duas bolachas quadradas. Gelado de sabores diferentes e duas bolachas.  Estalavam na boca e sabiam a baunilha. Quando ficavam moles e o gelado escorria das mãos até aos cotovelos, nós ríamos. Eu era quase crescida ela era uma miúda arruivada - uma cor diferente - e franzina, muito bonita, que fazia parte da família, nos almoços de domingo, no mês de agosto. ” Aquela sobrinha da Conceição é mesmo bonita. Que bela criança”, dizia o meu avô, “Uma menina muito bonita”, repetíamos em coro, sempre que a encontrávamos. Eu gostava daquela miúda. Gostava do seu rosto de boneca. Muito sossegada que faziam gosto em passear, ou sentar ao colo do tio que nos amassava com beijos e abraços. Muito tranquila, não aborrecia ninguém, ouvia as conversas dos crescidos e ajudava-me de boa vontade a levantar a mesa. Eu refilava:  “ Sou sempre eu! É injusto”, “ A Luisinha ajuda-te:”, tranquilizavam-me, eu dizia que sim e aceitava a ajuda, contrariada, lá arrumávamos, mais ou menos, a cozinha. A Luisinha olhava-me e imitava os meus gestos, “Tem sido muito boa de criar esta criança”, dizia a avó da Luisinha. (Não sei se hoje terá mesma opinião!) A Luisinha e eu crescemos, o mês de agosto mudou as nossas rotinas e durante muitos anos, apenas, ouvíamos falar, uma da outra. Os tios diziam-me que os pais andavam de cabeça perdida,” Não sabem o que lhe hão de fazer. Acho que até já saiu de casa da minha sobrinha”, “ Boa”, pensava eu. Soube mais tarde que os livros que eu deixara espalhados no casarão da nossa tia lhe tinham feito companhia durante os dias de sol de julho a setembro. A Luisinha não gostava de praia. “ Aquelas férias de verão na casa da tia Conceição eram um inferno”, confessou-me, mais tarde.” Como eu odiava tudo aquilo, o baldinho, a pazinha, a sombrinha e o sol. O sol. Não aguentava o sol. Devo ter um sangue diferente do das outras pessoas.” A minha amiga tem um sangue diferente de todas as pessoas que eu conheço. Passámos muitos anos longe uma da outra. Víamo-nos nas fotografias dos casamentos, dos batizados e encontrámo-nos, uma vez, no funeral do tio que nos amassava com beijos e abraços. Mal nos falámos – ela ainda era a Luisinha e eu já era outra pessoa. Nessa altura, ela também já era outra pessoa, a Luísa. Muito direita, muito magra, ainda arruivada. Muito séria. “A vida não tem sido nossa amiga”, digo-lhe, às vezes, “ Estavas à espera que a vida fosse como nos livros que lemos? Desengana-te, amiga e olha para as coisas boas”. Rio-me, quando ela me diz isto, porque me lembro das suas mãos magrinhas e pequeninas a arrumar a saladeira de cristal, no armário da cozinha, da tia Conceição “ Se a saladeira se partir a culpa é tua! Deverias ser tu a arrumar a loiça, ela ainda é uma criança”. Acho que a Luísa nunca foi criança, poucas coisas a fazem rir e todos os dias são combate, suor e lágrimas. Herdou, não sabemos de que lado da família, o gosto pela pintura e pela fotografia. O gosto, o talento e a disciplina de uma trabalhadora.“ Até pareces alemã, da Alemanha, do outro lado do muro, da RDA”, Já percebi,” responde-me, rimo-nos as duas. “ Se eu não trabalhar, definho, além disso, tenho contas para pagar. Filhos. Colégios. Tu sabes, como é!”Sim, sei como é, aliás, talvez por termos comido tanto gelado e arrumado tanta loiça juntas, fomos presenteadas com vidas tão idênticas. Mas a Luísa é feita de aço, de ternura, solidariedade. Talento. Feita de amor. Arregaça as mangas para pintar uma tela gigantesca, acompanhar uma amiga numa cama de hospital ou fazer uma mousse de chocolate. Faz promessas e cumpre. Nunca a ouvi dizer logo se faz e, por razões que só ela conhecerá, a primeira vez que a ouvi dizer não, foi dias depois do marido ter morrido. Vive com os filhos, dois gatos, um aquário. Tem nas mãos as marcas dos quadros que pinta. Dedos finos, pequeninos, manchados de cores. Magrinha a silhueta de um traço só de nobreza e vestido cor de rosa.
A condizer com a cor do cabelo.
Não estamos juntas muitas vezes. Nem sempre estamos de acordo e tenho a certeza que já não me ouve quando partilho com ela o último desgosto de amor. As minhas inseguranças incomodam-na como o sol nos meses de verão. E é muito mais corajosa do que eu. Acrescento que não tenho uma única peça de roupa cor de rosa, nem nenhum quadro ou fotografia assinados, por ela, nas minhas paredes. Nada. Não preciso.
Somos amigas.
Somos boas amigas. Gostamos da nossa amizade. Assim como está.

Um dia disse-me que tinha ouvido, pela primeira vez, Jezebel, talvez a melhor canção de Sade Adu, em casa de um namorado por quem tinha estado muito apaixonada, mas “ Era só eu, ele nem por isso”. Luisinha  – “ Não te rias!” -  aqui tens só para ti Jezebel e a Sade Adu.  “ O namorado não consegui encontrar”.

Um abraço, amiga, adoro-te.







2 comentários:

  1. Olha, bolas, agora fico aqui de lágrimas nos olhos. Caramba, só faltam os cortes do Firmo, de resto está aqui tudo. A amizade é a melhor forma de amor e os livros salvaram-nos. Não foi só a mim, pois não? Bem hajas. Adoro.te

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    1. Se calhar os cortes do Firmo ainda por lá estarão, à nossa espera.
      Beijos eu também te adoro

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