QUEIXA
DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Quando,
a treze de maio, iniciei a minha aventura na blogosfera, sem nenhuma inspiração
divina, nem influência de Belém, decidi escrever sobre a vida, o amor, a morte,
a felicidade, a infelicidade, o medo, a música, o chocolate, as
saudades, enfim, a vida e as coisas da vidinha e, acima de tudo e de
todos escrever, desafiar a folha em branco, carpir mágoas, encontrar
histórias e brincar com as palavras. Também com sangue, coração, lágrimas, até
ao osso. Decidira não me deixar arrastar pelo desânimo da crise, nem pelas
dores deste país que já não conheço, não por não querer participar na res publica, mas
porque queria que a minha escrita fosse feita de palavrar,
sem outro dever e intenção. Fui ingénua, quando pensei que o cartão
de cidadão e o número de contribuinte se pudesse guardar na carteira
servindo apenas interesses burocráticos. Agora, culpo-me por me ter
reduzido, desta forma tão displicente (arrisco: a palavra é forte), a uma fazedora
de literatura - ai de mim! - com mais ou menos espuma, com mais ou menos estilo ou tesão (epíteto
escolhido por um amigo, epíteto no masculino, pois claro), uma palavrosa
leviana entretida com o seu umbigo. Devaneios e desculpas arrumados, introdução
longa concluída, levanto-me, escrevo e grito, deito para fora raiva,
sentimento de injustiça desalento e desânimo. A solidariedade e
o gosto pela minha profissão tomaram-me de assalto, isto é, a
partir de agora serão esses dedos que irão percorrer o teclado.
Nas
últimas horas, tenho ouvido impropérios - variados e de cores diferentes -
insultos e outras tiradas do mais fino recorte literário, contra
os preguiçosos, faltosos, egoístas e incompetentes professores. Os professores estão a prejudicar os alunos, os
professores estão a esquecer-se do 'superior interesse dos alunos', os
professores têm demonstrado a sua irresponsabilidade e blábláblá. Chega! Agora, grito eu: sou professora de alma e
coração! Desde que me perguntaram a primeira vez: O que é que queres ser quando fores grande? Dou aulas, sim, são dadas, porque o preço é tão
baixo, que não encontro outro verbo mais apropriado. Adiante. Estou no meu
trigésimo segundo ano letivo e tenho dedicado grande parte da minha vida ao
estudo e à leitura para a preparação de aulas, trabalho, em média, por semana,
muito mais de quarenta horas. Eu e tantos outros que conheço. A minha escola
tem os equipamentos degradados, paredes rachadas, vidros partidos, persianas
que não sobem nem descem, insuficiente número de auxiliares de ação educativa,
instalações sanitárias insalubres e tudo o resto que se possa imaginar
numa escola que esteve dois anos à espera "de obras extraordinárias"
que acabaram por ir sabe-se lá para onde...Acrescente-se que as turmas têm
entre tinta a trinta e três alunos, sentados e arrumadinhos em salas onde cabem
vinte e oito, no máximo, trinta alunos - com muita boa vontade. Aliás, a minha escola funciona a boa
vontade. Computadores por dois ou três alunos? O que é isso? Uma
miragem. Quadros negros, normais, os de sempre, onde se escreve com giz branco?
Devem ser meia dúzia. Salas para trabalhos de multimédia (estratégia
tão profícua e recorrente nos programas que preparam os alunos portugueses
para os desafios europeus)? Temos uma onde bem sentados e cobertos de boa vontade
cabem vinte e cinco pessoas, professor incluído. Écran, aquela
tela larga e branca onde se mexem animais pessoas e coisas, não sei se
teremos algum. Papel para fotocópia a preto e branco? Temos pouco. Para
fotocópias a cores não há dinheiro. Salas de trabalho para professores? Onde calha.
Se calhar, faltar algum professor. Laboratórios equipados de acordo com as
exigências dos programas? Mais ou menos, pura magia dos professores das áreas
científicas. Uma boa biblioteca? Sim, temos estantes com livros muito bem
organizados, na melhor sala da escola - a mediateca - que funciona como
sala de estudo, de reuniões, de palestras, de representações teatrais,
concursos literários e de línguas. Uma sala. Vinte mesas algumas cadeiras. Uma
sala. Às vezes está fechada porque não há ninguém disponível para poder receber
e trabalhar com os alunos. Eu estou a fazer o retrato da minha escola. Acredito que, salvo mais um vidro partido ou uma
racha na parede, o retrato deve ser igual a tantas e tantas outras
escolas neste país. No país profundo, o tal, o real. E este retrato peca por
defeito, não me quis alargar nas lamentações. Mas temos bons resultados nos
exames nacionais, temos alunos de primeiríssima água, professores de excelência
que se desdobram em reuniões intermináveis, afogam-se em decretos-lei, agonizam
em legislação. Funcionários diligentes. Trabalha-se de janeiro a dezembro. A
minha escola, os professores da minha escola, os funcionários da minha escola respeitam
os alunos e são respeitados. Funcionam todos com boa vontade. É
a minha escola
- há dezassete anos que faço parte desta minha escola. Não é a escola ideal, perfeita - essa escola
não existe! Então expliquem-me, se souberem, quem tem prejudicado os alunos?
Quem todos os anos letivos, uns a seguir aos outos, tem deitado fora ‘o
superior interesse’ dos alunos? Quem é que lei, atrás de lei, tem demonstrado
uma grande e Superior irresponsabilidade? Quem é que governo sim, governo sim
tem dado provas de grande incompetência? Não têm sido os professores. Não.
Se existe ensino público de qualidade é porque HÁ MUITO BONS PROFESSORES
espalhados por este - quase - país. Dia dezassete haverá greve aos
exames, já houve greve durante o período destinado às avaliações do final
do período. Muito bem, abençoadas greves e, se não tiverem servido para nada,
se nenhuma das reivindicações for atendida, um mérito, pelo menos um,
estas greves tiveram: os professores mexem com a sociedade civil. Os professores existem. Os
professores são gente. Os professores são gente de bem. Os professores
trabalham e, como diz uma amiga minha, fazem-no por amor, porque interesse não
têm nenhum!( Se tiverem trabalho. Se ficarem colocados. Se tiverem horário.) Se
os alunos não fizerem exame de Português no dia dezassete, farão noutro dia. As
férias marcadas com a família ficam comprometidas, pois ficarão. Quando os
médicos fazem greve não se adiam as operações? Quando os pilotos fazem greve
não aumentam as filas de espera nos aeroportos? Quando os maquinistas
fazem greve não chegamos atrasados aos empregos? Então se a greve não for sentida, na
pele, por todos, para que servirá então? Não nos esqueçamos que quem corrige as
provas de exame são os professores, sim, também, terão as suas férias, as suas
vidas comprometidas, as famílias em alvoroço. Se depois das férias, se tiverem
férias, ainda tiverem emprego! Porque os professores também são pessoas,
gente, com sangue, com cabeça, com tristezas, com alegrias, com doenças. Pensem
nos professores, pensemos nos professores. Não me dirijo a si, senhor
ministro (com minúscula) porque não costumo falar com pessoas que me
desrespeitam, mas seria bom que, de vez em quando, se olhasse para os
professores e os víssemos. Forma do verbo ver. Quanto ao resto não me
pronuncio, não acredito nas aparições de Nossa Senhora de Fátima, nem no
subsídio de férias em junho, nem no moço de Boliqueime. Coisas minhas.
Daqui
a pouco os alunos realizarão, ou não, o exame de Latim e de Português, eu
ficarei em casa, estou doente, mas é ao lado de todos os que, como eu são
professores, que me poderão encontrar.
Bem
hajam!
Excelente texto, Linda.
ResponderEliminarVou partilhá-lo nos grupos de professores de que faço parte, no fb.
Obrigada. Beijinho